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9.12.06

O ASSOMBRO NA CASA DO SIDEMAR

















Rogério silvério de farias, lendário colaborador das clássicas revistas "Mestres do Terror" e "Calafrio", da Editora D-Arte, na década de 80, estréia como colaborador da câmara com um conto fantasmagórico assustador baseado em fatos reais!!!







O ASSOMBRO NA CASA DO SIDEMAR

Conto de Rogério Silvério de Farias





Querem ouvir? Eu conto! Mas é uma história de horror! Vocês têm certeza de que estão preparados para as coisas medonhas que vou contar? Estão?... Então, meus senhores, vou contar, mas não me responsabilizo pelos danos que esta história macabra possa causar em seus nervos. A história é deveras apavorante. Portanto, quem tiver nervos fracos, que vá ler outra coisa, outra coisa fresca como Paulo Coelho, por exemplo. Gosto de falar sobre as sombras e os mistérios que nelas habitam, gosto de falar da noite e do medo, do que se oculta nas trevas, do pânico, do horror catacúmbico. Gosto de falar das criptas, dos sepulcros antigos, dos pântanos enevoados, dos desertos e bosques solitários onde seres invisíveis dançam a terrível melodia da morte. Gosto de falar não somente das coisas do Céu e da Terra, mas das coisas do Inferno também. E que Deus tenha piedade da minha alma de contador de histórias proibidas e fantásticas!
A casa tinha sido erguida sobre um antigo sambaqui, nas regiões do Sul onde proliferam tais lugares estranhos onde jazem ainda restos de esqueletos, acumulados pelos habitantes pré-históricos do litoral e das margens de lagos e rios brasileiros, sítios onde antigas forças invisíveis parecem atingir o paroxismo nas noites de lua cheia. Forças etéricas, ali, são geradas, forças místicas, de incalculável assombro catacúmbico e nosferático, disso eu não tenho dúvidas.
Coisas estranhas aconteceriam naquela casa. Coisas comuns não a Terra, mas aos abismos negros que existem nas profundezas do negro Inferno.
Estava eu e o Sidemar, na casa. Era verão. Calor. Noite quente, abafadiça. A noite era de lua cheia. Propícia a fenônemos paranormais, sobrenaturais. Fenômenos que desafiam toda a lógica apregoada pelo ceticismo estéril.
Somente a luz da tv ligada, nós assistíamos um imbecil programa de auditório. Devo dizer que meu amigo Sidemar era um tipo estranho, excêntrico. E solitário. Sua família pedira que eu passasse um fim de semana com o sombrio cavalheiro de olhos tristonhos e negros como os poços do mundo da escuridão dos demônios. Eu não o conhecia muito bem. De sua infância e adolescência eu pouco sabia. Era psicólogo e advogado, o Sidemar, mas não exercia nenhuma das profissões; vivia de vender suas pinturas a óleo, quadros em estilo surrealista. Também era poeta bissexto, vez por outra publicava um livrinho contendo poemas que lembravam o estilo de Edgar Allan Poe.
De repente, das trevas da noite... entrou uma coisa alada, negra, lépida. Enfiando-se janela adentro, balançando as cortinas.
A princípio pensei tratar-se de um maldito morcego. Ou então um pássaro ou inseto da noite estival. Mas não era. Era algo muito estranho, pude ver na penumbra iluminada pela luz azulada da tv, era algo como uma imensa borboleta negra, em cujas asas viam-se desenhos estranhos, como que mandalas feitas por algum lunático.
Agora, nesta parte da história, quero falar sobre cadáveres. Mais precisamente, um cadáver.
A minha história tem cadáver, meus amigos. Eu não escrevo coisas edulcoradas e esperançosas. Não sou um Paulo Coelho. Eu sou Rogério Silvério de Farias, o sombrio, aquele que escreve como quem desenterra cadáveres.
Acontece que morreria alguém na frente da casa onde estávamos. Um motoqueiro fincou a cara no poste. Seu rosto ficou estraçalhado, uma massa de sangue e carne lacerada, amassada horrivelmente. Lavado de sangue. Na verdade sua cabeça quase fora arrancada com o impacto brutal.
Fomos averiguar, o estrondo tinha sido grande. A suposta borboleta sumira, voando e saindo pela outra janela. Tínhamos largado a tv e ido atrás da coisa alada. E agora estávamos olhando para o poste a frente da casa, e o cadáver do motoqueiro.
Ele quebrara o pescoço. A posição grotesca do cadáver, a motocicleta jogada ao chão, tudo deixava meu amigo Sidemar ainda mais nervoso, mas ele tinha me seguido até o portão.
Logo encheu de gente no local. Vizinhos e curiosos, alguns de pijama. Era mais de meia noite.
Meu amigo Sidemar ficava cada vez mais nervoso. Ele começou a dizer que a borboleta negra, ou o que quer que fosse aquela coisa alada, era o Anjo da Morte.
Mas o pior ainda estava por vir. O horror estava só começando.
Os companheiros do motoqueiro, que vinham da mesma festa da qual viera o morto, chegaram atrasados e ficaram atônitos ao ver o acidentado, vitimado pela morte.
Um deles, o irmão do defunto, começou a chorar como uma criança, dizendo: “Ele acelerou a motocicleta por causa daquela coisa na estrada, aquela coisa, aquela assombração do Inferno que vimos na estrada, a menina, a menina de branco..."
Incrédulo, comecei a indagar sobre quem era a tal menina de branco. Engoli em seco a ouvir de um vizinho uma explicação. Senti um calafrio na espinha.
Corriam lendas locais sobre essa menina, uma assombração contada por pescadores mais antigos.
Diziam os velhos caiçaras, ela é o ANJO DA ESTRADA DO INFERNO!
Pasmei ao ouvir aquilo.
A visao do cadáver com a cabeça quase que totalmente destroçada no poste, caído grotescamente, e a sirene da ambulância chegando...tudo deixava meu amigo Sidemar num estado de nervosismo alucinante.
Os primeiros pingos de chuva, os trovões soando, o relâmpago iluminando o pobre motoqueiro morto, agora sendo levado para o necrotério da cidade.
Eu sabia que os horrores daquela noite logo atingiriam o zênite da loucura. Meu amigo sentiu-se mal depois que a ambulância levou o cadáver do motoqueiro.
A chuva aumentou e entramos para dentro de casa. A chuva era forte, agora.
Fomos dormir com a imagem do cadáver com o pescoço quebrado em nossa mente.
Adormeci com um pensamento de revolta na mente: "Por que Deus pôde matar alguém assim? Por que a morte, Deus? Acaso seremos nós o teu gado?"
Lá pelas três da madrugada acordei-me num sobressalto.
No quarto ao lado meu amigo estava gritando de terror.
Havia faltado energia elétrica, imaginem a minha situação e o meu desespero quando tentei inutilmente acender as luzes, pressionando o interruptor.
Então acendi um isqueiro, e fui ao quarto de meu amigo. O que vi me deixou apavorado.
Iluminei o rosto de meu amigo, sentado na cama.
Eu preferia que Deus tivesse me cegado, nunca vou esquecer...Meu amigo Sidemar estava apavorado, babava, suava, tremia, os olhos deles contemplavam algo na escuridão medonha do quarto. Algo terrível. Algo medonho. Um assombro!
Eu estava meio sonolento ainda, mas eu vi, eu vi o horror!Juro que vi! Não, senhores, eu não sou louco! Um louco não guardaria na memória aquela cena sobrenatural, aterrorizante...aquele vulto sinistro...um vulto espectral, uma sombra, uma sombra do país dos mortos, uma sombra do Além!
Era o corpo astral do motoqueiro que morrera diante da casa, horas antes, isto era óbvio. O pescoço quebrado do espectro era a cópia idêntica da cabeça do cadáver que eu vira, caindo para o lado do corpo como a cabeça de um boneco desarticulado e bizarro...O que se seguiu foi a inconsciência para mim. Não lembro de muita coisa a partir de então.
Desmaiei, sim. Quanto a meu amigo... Seu juízo havia sido perdido, para sempre. Ele enlouquecera de medo, eu acreditava!
Quando acordei e me levantei do chão, a chuva havia passado.
Os primeiros raios da aurora iluminavam nossos rostos pálidos, lívidos ainda de terror...
Sacudi meu amigo tentando despertá-lo do torpor da loucura.
“Meu amigo!”, eu disse, ainda meio zonzo, “O que aconteceu depois que eu desmaiei? Conte-me, o que houve? Fale, homem , pelo amor de Deus!”
Ele permanecera em silêncio, seus olhos arregalados contemplando o infinito dos precipícios escuros da mente!
“E aquele vulto? Fale, seu maldito!O que,afinal, houve depois que eu desmaiei?”.
“Roger, meu amigo e irmão”, ele me disse, a voz trêmula como que atravessada pela eletricidade infernal do medo, “Roger, eu conversei... com o morto! O motoqueiro, Roger! Ele me contou coisas, muitas coisas...”
“Seu palerma e idiota!”, eu gritei, enfezado como um anjo caído, desferindo um tapa violento no rosto de Sidemar.
Ele me disse então, a voz gutural: “O morto, Roger, o motoqueiro morto, eu vi o corpo astral dele! E você também viu antes de desmaiar, você chegou a vê-lo, confesse!...Ele, o motoqueiro, nao queria morrer, Roger...A passagem foi violenta...Roger, ele...Ele se recusa a acreditar que está morto, Roger...
Num acesso de cólera, eu gritei, pegando-o pelo colarinho, sacudindo-o, dizendo: “Cale a boca, seu retardado! Nós não vimos nada, foi alucinação, um pesadelo! Foi sugestão, vimos o cadáver do motoqueiro em frente da casa, isso nos abalou mentalmente. Foi alucinação provocada pelo medo extremo!”
“Roger”, ele me disse, começando a rir e chorar ao mesmo tempo. Algo como um ricto boçal de loucura contorcendo seu semblante. “Roger...nao existe morte...Roger, há apenas a PASSAGEM... A passagem para as enlouquecedoras dimensões além da matéria física...Nós continuamos após a morte, levamos toda nossa loucura e angústia conosco! Estamos todos perdidos, Roger! Nós vamos morrer e acordar no Além, perdidos, solitários, confusos. Desesperados!”
Neste instante meu amigo soltou uma gargalhada que explodiu na casa como uma granada lançada por um demônio da loucura. Enfim, a demência total se apossara de Sidemar. E eu, trêmulo, peguei o celular e liguei para sua família, chorando em desespero.
Certas coisas na vida a gente nunca esquece. Nunca. Este foi o caso do Sidemar, a história do assombro na casa do Sidemar.
Duas semanas depois fiquei sabendo de seus familiares a verdade. Meu amigo Sidemar tinha um grau de mediunidade. Uma mediunidade não desenvolvida corretamente.
O tempo passou, fui crescendo, envelhecendo. Nunca mais tive um amigo de verdade. Nem mesmo um amigo estranho como Sidemar. Nunca mais o vi, desde então. Mas os horrores sobrenaturais daquela noite maldita ainda permanecem indeléveis em minha mente atormentada e solitária diante dos mistérios fantásticos da vida e da morte!

A MASMORRA


Eis mais uma colaboração espetacular do escritor Paulo Soriano na Câmara dos Tormentos.




A MASMORRA

Paulo Soriano


O carcereiro, que estava sentado à mesa, ressonava. À frente dele, sobre o tosco móvel de madeira derribada à floresta, uma candeia ardia, dispersando precariamente a escuridão viscosa, que emanava das paredes bolorentas, e a tudo envolvia, pesadamente, com o seu acre bafio. O vigia esquecera o postigo do cárcere aberto; por isso, uma nesga azulada de luz chegava à cela, adensava sobre nossas cabeças e depois morria, sufocada pela treva úmida e cruciante.


O meu companheiro de reclusão era jovem e moreno, como eu. Os olhos eram negros e indolentes, mas uma chama atroz, por vezes, rutilava subitamente em suas pupilas, e uma fisionomia absurdamente desumana assomava à sua face, como se emergisse das camadas mais obscuras de sua alma. Isto também – devo confessá-lo – vinha comigo; mas era ele, ao invés de mim, um rico e poderoso boiardo, que pelejara, com galhardia, contra os otomanos. Embora estivesse trancafiado há mais de uma semana, conforme eu calculava juntando a cada inexorável amanhecer mais um nó aos cadarços de minhas botinas, o jovem duque mantinha limpa e fresca a sua indumentária de nobre, malgrado tivesse agora as barbas crescidas e os cabelos oleosos em perene rebeldia. Juntos, parecíamos irmãos consangüíneos. Mas as semelhanças esmaeciam quando confrontávamos as nossas histórias.


Eu fora atirado ao calabouço do castelo de Bran porque sonegara a terça ao meu impiedoso suserano, e, agora, esperava o dia em que, em praça pública, e à guisa de exemplo, faria parte do macabro séquito destinado ao holocausto; ele, porque, dentre todos os boiardos da Valáquia, fora o único a ter o ventre poupado ao deslize perfurante da estaca aguçada. Tão-logo reconquistou de Vladislav o trono valáquio, Vlad Drácula convocou à sua corte, reunida em Tirgoviste, a poderosa nobreza do país. Ansiosa por cargos e regalia, mais de uma centena de boiardos acorreu, nesciamente, de peito inflado pela ambição, ao chamado do novo suserano. E não suspeitavam os gentis-homens que as portas do castelo se abriam como o aparato móvel e fatídico de uma ratoeira. Mal as barras de ferro selaram os portões do vasto salão de banquete, veio a ordem do sanguinário soberano, cuja crueldade rivalizava com a incomplacência: um a um os nobres valáquios encontram a morte cruel pela empalação. O motivo pelo qual se salvara o Duque de Vesta Verde ninguém sabia ao certo dizer; mas comentava-se amiúde, e erradamente, que Vlad Drácula, embora primogênito do Diabo*, hesitou em derramar sangue de mesma estirpe que a sua, talvez em respeito à memória de Vlad Dracul, de quem o duque, agora meu companheiro de masmorra, era igualmente filho, ainda que ilegítimo.


O jovem duque estava a salvo da empalação. Quanto a mim, eu só poderia dizer justamente o contrário, já que minha execução era quase iminente. Por isso, e porque havia pouco espaço nos meus cadarços para novos nós, recuava o pensamento quando se insinuavam em minha mente insidiosas sugestões. Sugestões incoercíveis – vaporosas e medonhas –, carregadas de imagens tenebrosas, pintadas em cores esfumadas, de uma morte certa e cruel. Eu via, emergindo da escuridão, o meu corpo dobrado, traspassado pela estaca em riste, sacudindo-se ao ritmo frenético dos espasmos que orquestram um fim agônico e prolongado. Atinha-me, assim, exclusivamente, ao meu passado de camponês. O duque me ouvia atentamente, embora minha narrativa o entediasse. Às vezes, maneava a cabeça à guisa de um assentimento impaciente. Eu ia completar uma reminiscência de infância quando a chave girou. Um jovem imberbe irrompeu de súbito, precipitado que fora, violentamente, de encontro ao chão. Desta feita, o carcereiro cerrou o postigo, arremessando-nos na escuridão mais aterradora. Apenas avisou, antes de fechá-lo, que tivéssemos cuidado com os nossos pertences – que a rigor eram nenhum – porque estaríamos na companhia de um gatuno. E sorriu ruidosamente, antes de aboletar-se em sua mesa, donde, pouco depois, vieram os sonoros roncos.


- Senhor Duque de Vesta Verde! Que o Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, esteja convosco! – Exclamou o rapaz que, num vislumbre embora mínimo, reconhecera imediatamente o seu senhor. – Cá estou para cumprir a minha pena. Mas vos posso participar de uma alegre notícia, que grassa em todo o país como um rastilho de pólvora, cujo fumo oloroso se eleva aos céus como uma dádiva e uma bênção divinas, em atenção às nossas preces silenciosas. Sabe-se que vosso irmão assinará, ainda hoje, a vossa alforria. Vosso tesouro e vossas terras serão restituídos, assim como vosso título nobiliárquico. Amanhã, ao morrerem as matinas, uma pequena comitiva irá vos escoltar até Tirgoviste, onde o Príncipe Vlad, pessoalmente, procederá à vossa reabilitação, em solenidade pública.


Às palavras do jovem imberbe, elevou-se um ruído, semelhante a um estalo de dedos. Ele prosseguiu:


- Ouve-me, senhor?


-Perfeitamente – eu respondi, ainda segurando o corpo inerte do príncipe. Eu havia partido o seu pescoço. Agarrara com a sinistra a sua goela, puxando-a para trás, amparando a sua nuca no meu ombro direito; com a outra mão, girei a sua cabeça rápida e violentamente para trás, até que viesse o estalo característico. – A ti sou profundamente agradecido pela menção da boa nova. Vem tu a mim, já que mereço o teu amplexo – disse, enquanto silenciosamente depunha o corpo do duque no assoalho de pedra.


Ouvi que o jovem se aproximava, até sentir-lhe a tépida respiração. Então, dando a volta em torno de onde ele deveria estar, repeti o procedimento homicida com a mesma destreza calma e silenciosa. Depois, recolhi os cadáveres em um canto obscuro e troquei as minhas vestes com as do Duque de Vesta Verde.


Naquela noite dormi mal. Estava demais excitado para deixar-me conduzir docilmente à languidez do sono. A expectativa de uma fuga quase imediata fazia o meu peito arfar e o meu coração bater descompassado. E a companhia de dois cadáveres atiçava a minha imaginação, que ardia em brasas. Assim, os meus febris pensamentos vagavam pela escuridão da cela, flutuando no ar como se donos de seu próprio destino. Minhas reflexões absorviam a umidade das trevas e, como elas, tornavam-se azedas e bolorentas. Migravam pelos cantos do cárcere, perpassavam as paredes como sombras fugidias, invadiam as mentes mortas do príncipe e do jovem larápio; depois, retornavam ao seu incôndito covil com o dobrar furioso de sinos lúgubres, a abalar-me os alicerces. Atormentava-me, como uma badalada a percutir e a vibrar em meu crânio, a possibilidade de ser reconhecido, embora me fiasse na convicção de que, usando os paramentos impecáveis do Duque de Vesta Verde – nos quais, à altura de meu peito, a estampa de um dragão inconcusso aquecia-me com as chamas que exalava pelas fuças –, até mesmo a minha mãe seria engabelada.


Foi quando senti que algo se aproximava de mim. Como que envolto num halo azulado, translúcido e fantasmagórico, o Duque de Vesta Verde, metido em meus trajes de camponês, mergulhava as mãos frias em meu pescoço e com elas pressionava-me o pomo-de-adão. Olhei nos seus olhos, e vi que não eram mais os mesmos, pois agora a sua face assumia as feições pueris do jovem imberbe, embora as mãos continuassem vigorosas e inflexíveis como as de um bravo guerreiro boiardo. Então uma adaga flutuante cintilou, antes de percorrer o meu pescoço com uma precisão absoluta. Estava-me a sufocar quando vieram as batidas na porta. Despeitei de súbito, arfando e bufando. O carcereiro chamava pelo Duque, anunciando, pelo postigo, a sua libertação:


- Senhor Duque, apressai-vos! Deveis logo vos aprontar, pois que vosso irmão, o Príncipe Vlad, vos espera no castelo de Tirgoviste! – Gritou o carcereiro do turno da manhã, aquele que aliciava garotinhas e as bolinava na sala de tortura, e que tinha os olhos nublados pela catarata. Não poderia haver dúvidas: eu estava a salvo.


De onde estava, o carcereiro certamente podia me ver, apesar de seus olhos baços de velho perdigueiro, mas não divisava os meus companheiros. Eu os havia recolhido ao fundo da cela para evitar que o velho vigia percebesse, prematuramente, que eles não dormiam, pois estavam, como vós já sabeis, definitivamente mortos. Levantei-me. Dei, como de costume, um nó no cadarço, e, simulando uma esplêndida majestade, transpus, transpirando uma arrogância quase genuína, os umbrais que se abriam para mim.


Em pouco tempo, escoltado por dois membros da guarda principesca, estava eu a caminho de Tirgoviste. Seguíamos por uma estrada de ladrilhos pétreos, margeada pela floresta de árvores esguias. Teixos e pinheiros subiam os vales num ritmo indolente, apressado pelos ventos, até as encostas das montanhas enevoadas. Pensava em como faria para me livrar de tão inoportuna e perigosa companhia. Precisaria agir rapidamente. Como um simples camponês, eu não estava bem treinado para a guerra e, desarmado, seria quase impossível fazer com que os guardas sucumbissem à minha violência. Mas, se me faltava a força física, sobejavam-me a astúcia e a artimanha. Buscando, confiante, uma oportunidade para escapar, pus-me a conversar com o guarda mais jovem, no intuito de distraí-lo:


- Alegra-me que esteja o Príncipe Vlad assim tão clemente...


- Ah, não sabe vossa alteza o que se passa no coração de vosso irmão! – Respondeu-me prontamente o guarda, sem tirar os olhos das rédeas de sua montaria. – Ainda ontem, o nobre príncipe concedeu, por decreto, anistia a todos os vassalos que sonegaram as terças pertencentes a seus suseranos mortos. Comenta-se que a clemência de nosso valoroso príncipe tenha um preço, pois deseja ele, sem tardança, empregar todos os homens disponíveis, nobres ou não, em campanha contra os turcos infiéis. Ele está arregimentando um exército poderoso, em que nenhum valáquio púbere pode faltar, nem mesmo os excomungados e sonegadores de tributos.


A estas palavras, minha face anuviou. Sem perceber que o fazia, apeei. Os guardas desceram de seus cavalos, perguntado-me:


- O que se passa, senhor?


Ao longe, eu ainda conseguia divisar o castelo de Bran, uma fortaleza negra mergulhada na floresta de árvores aguçadas. Ali, dois homens haviam sido sacrificados inutilmente, tombados ao assédio cruel de minhas mãos assassinas. Já quando eu os matara, estava a salvo, mas disso não sabia e nem poderia adivinhar. Permiti que minha astúcia homicida tisnasse o meu próprio destino. Deixasse-me ficar e, a esta hora, estaria de mãos limpas, livre de qualquer apuro e sem peias para desertar à convocação militar. Mas, agora, a minha situação parecia-me absurda e desnecessariamente complicada. Afinal, eu matara um duque, meio-irmão do sanguinário príncipe Vlad Drácula. A expectativa de uma fuga artimanhosa cedera lugar a um arrependimento estéril, e um medo insano golpeou o meu espírito com o ímpeto de um aríete.
- Votemos à montaria – ordenei.


- Não, senhor. Vós não ireis a lugar algum. Vossa alteza, involuntariamente, apeou no destino certo – disse-me, sem piedade, o guarda mais velho.


Os guardas arrebataram-me violentamente e me conduziram a uma clareira que se abria bem próxima à orla da floresta. Então, tudo compreendi. A sagacidade e a crueldade do Príncipe Vlad não tinham limites. Traiçoeiro como uma víbora peçonhenta, elaborara uma cilada para atrair o irmão à morte, mas de uma maneira tal que não recaísse sobre suas costas qualquer suspeita. O Duque de Vesta Verde era querido pelos súditos. Por isso, e não por um respeito sobrenatural a um pai defunto, poupara-lhe o príncipe, provisoriamente, a vida; mas não sem antes engendrar, em seu espírito malévolo, um desfecho que lhe atendia convenientemente às premências das injunções políticas. Vlad poupara a vida do irmão bastardo – e isto é fato – mas apenas para encenar uma morte burlesca: liberto pelo seu clemente príncipe, o duque padecera à investida de salteadores, quando rumava altivo para a reabilitação.


Sim, isto era evidente! O príncipe temia que o irmão bastardo aspirasse ao trono. E como fui tolo em crer que houvesse, naquele coração pedregoso, um pequeno nicho a abrigar um fiasco de clemência! Como fui néscio em olvidar que as armadilhas insidiosas eram a tática de que se valia o jovem príncipe para dizimar os seus inimigos!


Depuseram-me junto ao tronco de um jovem teixo; ali, dois cadáveres insepultos já me esperavam. Próximo a mim, o sangue ainda viscoso inundava o peito de dois homens maltrapulhos, proliferando sobre os seus corpos como a sombra de um sudário rubro e andrajoso. Repentinamente, o guarda mais velho mergulhou, à covardia, a sua adaga no tórax do próprio companheiro, cujos olhos, no momento da morte, sacudiam-se de surpresa e pavor. Depois, desferiu um golpe no próprio braço, num simulacro de enfrentamento heróico aos ladrões.


A farsa estava ultimada. Sim! Findava-se a macabra pantomima! Mas, quando o meu corpo fosse descoberto, Vlad Drácula não teria como abafar o escândalo de um fratricídio. Isto, de certa forma, me alegrava, aplacando-me o desespero.


“Pelo menos não morrerei empalado”, pensei, antes que a adaga amolada percorresse lentamente todo a circunferência de meu pescoço, que tombou num ângulo grotesco, antes que meu sangue se esvaísse completamente.


****


* No romeno, Drácula significa, literalmente, “filho do dragão”; o nome compõe-se da palavra “drac” (dragão), seguida do artigo masculino definido singular “ul” (o), que, naquela língua, diferentemente do que sucede nos demais idiomas neolatinos, se posiciona depois do substantivo, a ele aderindo; e, finalmente, da partícula designativa de filiação “a”, correspondente ao galego-português es (Rodrigues = filho de Rodrigo; Esteves = filho de Estevão). A palavra “drac” corresponde a um dos diversos apelidos conferidos ao diabo, encontrando, em nosso “cão”, um similar paralelo. Daí a alusão à primogenitura do diabo, já que, nesta acepção, Drácula está a significar “o filho do diabo”.

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