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29.10.07

A GUERRA DOS MUNDOS (LIVRO 2)

Leia agora a eletrizante conclusão do clássico romance de ficção-científica de H.G.Wels.



LIVRO II

A TERRA DOMINADA PELOS MARCIANOS

I
ESPEZINHADOS


No primeiro livro desviei-me de tal modo das minhas aventuras para narrar o que aconteceu ao meu irmão que, nos dois últimos capítulos, eu e o coadjutor ficámos esquecidos na casa abandonada de Halliford para onde fugíramos a fim de escaparmos ao fumo negro. Vou resumi-las. Permanecemos toda a noite de domingo e todo o dia seguinte - o dia do pânico - numa pequena ilha isolada do resto do mundo pelo fumo negro. Quedámo-nos na expectativa, sofrendo por não podermos fazer nada durante aqueles dois fastidiosos dias.
Estava preocupado com a minha mulher. Imaginava-a em Leatherhead, aterrorizada, em perigo, chorando-me já como se eu fosse um homem morto. Passeava-me pelas salas e gritava, pensando no nosso afastamento, em tudo aquilo que poderia acontecer na minha ausência. Sabia que o meu primo era suficientemente corajoso para enfrentar qualquer emergência; porém, ele não era a espécie de homem que apreende rapidamente o perigo, que age com prontidão. Não se precisava agora de bravura, mas de circunspecção. Alimentava uma única esperança: a de que os marcianos ainda a não tivessem encontrado. Tais dúvidas faziam-me sofrer. Os constantes juízos do coadjutor aborreciam-me cada vez mais; o seu desespero já me enfastiava. Depois de o ter censurado em vão, afastei-me dele, e fui para uma sala - que servia, sem dúvida, de escola, pois continha globos, bancos e cadernos de exercícios. Como ele fosse atrás de mim, refugiei-me num sótão. Queria estar só com a minha dor; fechei a porta à chave.
Estivemos totalmente cercados pelo fumo negro durante todo esse dia e a manhã do seguinte. No domingo à noite avistámos sinais de gente na casa vizinha - um rosto que assomou a uma janela, movimentos de luzes e, por fim, o bater de uma porta. Mas não sei de quem se tratava nem do que lhes aconteceu. Não vimos sinais deles no dia seguinte. Durante toda a manhã de segunda-feira, o vento impeliu o fumo negro em direcção ao rio. Crepitava cada vez mais perto de nós e, finalmente, dirigiu-se ao longo da estrada de acesso à casa que nos servia de refúgio.
Cerca do meio-dia, um marciano atravessou os campos, destruindo tudo à sua passagem com um jacto de vapor sobreaquecido, o qual se elevou contra as paredes, despedaçou todas as janelas em que tocou e queimou a mão do coadjutor quando este fugia da sala da frente. Finalmente, atrevemo-nos a espreitar de novo para fora, e pareceu-nos que a região a norte tinha sido assolada por uma tempestade de neve negra. Quando olhámos na direcção do rio, ficámos atónitos ao vermos o vermelho que se misturava com o negro das veigas crestadas.
Durante alguns momentos, não nos apercebemos de quanto isto afectava a nossa posição. Sentíamo-nos apenas vagamente libertados do fumo negro. Porém, mais tarde, notei que já não estávamos cercados e que podíamos sair. Mal compreendi que o caminho de fuga estava livre pensei em agir. No entanto, o coadjutor encontrava-se num estado letárgico, como que inconsciente.
- Aqui estamos seguros - repetia. - Aqui estamos seguros.
Resolvi-me a abandoná-lo - oxalá o tivesse feito!
Mais prudente agora, graças à lição que recebera do artilheiro, procurei mantimentos por todo o lado. Encontrei óleo e trapos com que cobrir as queimaduras e peguei também num chapéu e numa camisa de flanela que encontrara num dos quartos.


No entanto, quando ele se convenceu de que eu queria sair sozinho, embora antes se mostrasse conformado, resolveu de súbito acompanhar-me.
E, na quietude da tarde, seguimos pela estrada enegrecida que conduzia a Sunbury.
Em Sunbury, e espaçados ao longo da estrada, jaziam alguns cadáveres contorcidos de cavalos e de homens, carroças viradas, bagagens, tudo coberto por uma espessa poeira negra. Aquela mortalha de cinza recordou-me o que lera acerca da destruição de Pompeia. Chegámos sem incidentes a Hampton Court, com o cérebro povoado por imagens estranhas e, aí, esforçámo-nos por descobrir um tracto verde que tivesse escapado ao turbilhão sufocante. Atravessámos o Bushly Park onde os veados corriam de um lado para o outro, sob os castanheiros, e vimos alguns homens e mulheres, ao longe, correndo na direcção de Hampton. Dirigimo-nos em seguida para Twickenham. Aquelas foram as primeiras pessoas que avistámos.
Ao longo da estrada, os bosques fronteiros a Ham e Petersham ainda estavam em chamas. Twickenham não fora atacada nem pelo Raio da Morte nem pelo Fumo Negro, e via-se mais gente nesta região, que, todavia, não pôde dar-nos informações. A maioria dessas pessoas encontravam-se numa situação idêntica à nossa, aproveitando a trégua para mudar de abrigo. Tenho a impressão de que muitas das casas ainda estavam ocupadas por habitantes demasiado assustados para fugir. Também aqui eram evidentes os sinais de um tropel precipitado ao longo da estrada. Recordo mais claramente um amontoado constituído por três bicicletas despedaçadas, esmagadas pelas rodas de carroças. Cerca das oito e meia, alcançámos a ponte de Richmond. Como é natural, atravessámo-la rapidamente, pois encontrava-se a descoberto, mas consegui divisar um certo número de vultos vermelhos, com alguns metros de largura, vogando. Não sabia do que se tratava - não havia tempo para um exame minucioso - e fiquei-me por uma interpretação mais horrível do que aquela que mereciam. Também aqui, do lado de Surrey, se via poeira negra que outrora havia sido fumo, e cadáveres - um monte junto à entrada da estação-, mas só vislumbrámos os marcianos quando nos encaminhámos na direcção de Bar-nes. Avistámos, ao longe, um grupo de três pessoas que desciam a correr por uma rua marginal em direcção ao rio, que nos parecia deserto. No cimo da colina, a cidade de Richmond ardia com rapidez; nas imediações desta cidade não havia vestígios do Fumo Negro.
Então, de súbito, perto de Kew, aproximou-se, a correr, um certo número de pessoas e o topo de uma máquina de combate marciana assomou por cima das casas, a menos de uma centena de metros de distância. Ficámos aterrorizados ao vermos o perigo que corríamos. Se o marciano tivesse olhado para baixo, pereceríamos imediatamente. Estávamos tão assustados que não nos atrevemos a prosseguir. Voltámos para trás e escondemo-nos debaixo do alpendre de um jardim. O coadjutor agachou-se, chorando silenciosamente, e recusou tornar a mover-se.
Mas a minha ideia fixa de alcançar Leatherhead não me deixou em sossego e, quando o crepúsculo desceu, aventurei-me novamente. Atravessei um grupo de arbustos e uma álea, ao lado da casa grande, que se mantinha firme, e desemboquei em seguida na estrada para Kew. Abandonara o padre no alpendre, mas ele veio a correr atrás de mim.
O segundo passo a dar era a coisa mais temerária que jamais fizera, pois sem dúvida os marcianos encontravam-se perto de nós. Mal o padre me alcançou, avistámos a máquina de combate que víramos antes, ou uma outra, ao longe, atravessando os prados na direcção de Kew Lodge. Quatro ou cinco pequenas figuras escuras atropelavam-se diante dela, por sobre o verde-acinzentado do campo, manifestamente perseguidas por este marciano. Não usou o Raio da Morte para destruí-las: limitou-se a agarrá-las uma a uma. Aparentemente, arremessava-as para o interior do grande carregador metálico que sobressaía por detrás da máquina, tal como a cesta que um trabalhador carrega às costas.
Compreendi pela primeira vez que o propósito dos marcianos não deveria ser, simplesmente, a destruição dos humanos derrotados. Ficámos petrificados durante alguns momentos, depois voltámo-nos e fugimos por um portão, que se encontrava atrás de nós, para um jardim murado; deixámo-nos cair num fosso que surgiu oportunamente e ali ficámos até surgirem as estrelas. Entretanto, mal nos atrevemos a cochichar.
Suponho que deveriam ser umas onze horas quando ganhámos coragem para continuar. Desta vez, não nos atrevemos a seguir pela estrada. Rastejámos, antes, ao longo das sebes e através das plantações perscrutando penetrantemente a escuridão. Ele seguia à direita e eu à esquerda, procurando vislumbrar os marcianos que pareciam encontrar-se muito perto de nós. Casualmente, deparou-seHnos uma área crestada e enegrecida, agora arrefecida e coberta de cinzas, e um certo número de cadáveres de homens, espalhados, com a cabeça e o tronco horrivelmente queimados, mas com as pernas e o calçado na maioria intactos, e mais adiante, a alguns metros de distância de quatro espingardas rachadas e de algumas carretas de peças feitas em pedaços, cadáveres de cavalos.
Sheen, ao que parecia, escapara à destruição, mas a região estava despovoada e mergulhada no silêncio. Não encontrámos aqui nenhum cadáver; no entanto, a noite estava demasiado escura para que pudéssemos proceder a buscas nas estradas que marginavam a zona. Em Sheen, o meu companheiro queixou-se, de súbito, de fome e de sede, e decidimos explorar uma das casas.
A primeira casa onde entrámos, com certa dificuldade, pela janela, era uma pequena vivenda isolada, e não encontrei nada que comer, salvo alguns queijos cheios de bolor. No entanto, havia água, e apoderei-me de uma machadinha que poderia ser útil para arrombar a casa seguinte.
Encaminhámo-nos, em seguida, para o local onde a estrada descreve uma curva, na direcção de Mor-tlake. Vimos, aí, uma casa, no interior de um jardim murado. Na despensa, achámos uma certa quantidade de provisões -dois pães inteiros dentro de uma panela, um bife cru, e metade de um presunto. Faço um inventário preciso, pois, como na realidade aconteceu, deveríamos subsistir com esta comida durante uma quinzena. Debaixo de uma prateleira havia garrafas de cerveja, dois sacos de feijão e algumas alfaces frescas. A despensa dava para uma espécie de cozinha, com alguma lenha. Num guarda-louça, descobrimos uma boa porção de garrafas de Borgonha, sopa e salmão enlatados e duas caixas de biscoitos.
Sentámo-nos, às escuras, na cozinha adjacente - não nos atrevemos a acender a luz-, comemos o pão e o presunto, e bebemos cerveja pela mesma garrafa. O coadjutor, embora ainda amedrontado e inquieto, mostrava-se agora singularmente activo e eu incitava-o a comer, para que conservasse as forças, quando aconteceu aquilo que significava uma ameaça de encarceramento.
- Ainda não pode ser meia-noite - disse eu.
Nesse momento viu-se um clarão ofuscante de luz verde. Todas as coisas que se encontravam na cozinha pareceram claramente visíveis no verde e na escuridão, e sumiram-se de novo. Em seguida, ouvimos um estrondo, como eu jamais ouvira ou ouviria. Um momento depois, ouvi um baque atrás de mim, um ruído produzido pelo estilhaçar de vidros, um estampido e o estrondo provocado pelo desmoronamento da alvenaria, à nossa volta. A cal do tecto caiu em cima de nós, desfazendo-se numa miríade de fragmentos por sobre as nossas cabeças. Bati com a cabeça no fogão e fiquei aturdido. Contou-me o cura que estive inconsciente durante muito tempo. Quando voltei a mim, estava de novo escuro, e ele, com o rosto molhado - descobri mais tarde que escorria sangue de um golpe na testa-, borrifava-me com água.
Durante alguns momentos, não fui capaz de recordar o que tinha acontecido. Depois, gradualmente, tudo se tornou nítido. Uma contusão na testa afir-mava-o por si.
- Sente-se melhor? - perguntou o coadjutor, num sussurro.
Respondi-lhe, por fim. Soergui-me.
- Não se mexa -disse ele. - O chão está coberto de cacos de louça que caiu do armário. Não poderia mover-se sem fazer ruído, e eu creio que eles estão lá fora.


Ficámos tão silenciosos que mal ouvíamos a respiração um do outro. Tudo parecia mortalmente imóvel, salvo, em dado momento, qualquer coisa, um pedaço de estuque ou tijolo, que resvalou junto de nós com um som atroador. No exterior, muito perto, ouvia-se um ruído metálico intermitente.
Aquilo!-exclamou o cura quando o ouvimos outra vez.
Sim - disse eu. - Mas o que é?
- Um marciano - respondeu ele.
Prestei de novo atenção.
- Não me pareceu o ruído provocado pelo Raio da Morte - afirmei, e durante alguns momentos julguei que uma das grandes máquinas de combate tinha embatido na casa, como quando assistira ao choque de uma delas com a igreja de Shepperton.
A nossa situação era tão estranha e incompreensível que mal nos mexemos durante três ou quatro horas, até nascer o dia. E depois a luz infiltrou-se não pela janela, ainda sombria, mas através de uma abertura triangular entre uma trave e um montão de tijolos partidos, na parede atrás de nós. Pela primeira vez, víamos o interior da cozinha mergulhado numa espécie de penumbra.
A janela despedaçara-se sob a pressão de uma massa de terra do jardim, que resvalara para cima da mesa à qual estivéramos sentados e jazia debaixo dos nossos pés. No exterior, a terra acumulara-se contra as paredes da casa. No cimo do caixilho da janela, via-se um tubo de algeroz, arrancado. No chão, achavam-se espalhados pedaços de ferragens; o fundo da cozinha aluíra, e logo que surgiu a luz do dia itornou-se evidente que a maior parte da casa desabara. Contrastando vivamente com este espectáculo de ruína, via-se o elegante armário, colorido, à moda, verde-claro, com um certo número de recipientes de cobre e de lata em baixo, o papel da parede a imitar azulejos azuis e brancos, e papéis coloridos colados na parede por cima do fogão da cozinha.
Quando o dia aclarou mais avistámos, através da brecha na parede, o corpo de um marciano que fazia sentinela, creio, defronte do cilindro ainda incandescente. À vista disto, rastejámos tão cautelosamente quanto possível da penumbra da cozinha para a escuridão da copa.
Bruscamente, a interpretação exacta do que se passava surgiu no meu cérebro.
- O quinto cilindro - sussurrei -, o quinto tiro disparado de Marte atingiu esta casa e soterrounnos sob as ruínas!
Depois de alguns momentos de silêncio, o coadjutor murmurou:
- Deus tenha piedade de nós!
Recomeçara a lastimar-se.
Salvo os seus murmúrios, guardámos um silêncio absoluto, mergulhados na escuridão; pelo meu lado, mal me atrevia a respirar e mantinha os olhos fixos na luz fraca que se infiltrava pela porta da cozinha. Só podia ver o rosto do padre, uma forma escura, oval, o colarinho e os punhos da camisa. No exterior, o martelar metálico recomeçou, seguido de um tumulto violento e, após uma pausa, um silvo semelhante ao de uma máquina. Estes ruídos, na sua maioria de explicação problemática, continuaram espaçadamente e, quando muito, pareciam crescer à medida que o tempo passava. Neste momento, começava, para prosseguir, um ruído cadenciado de pancadas e uma vibração que faziam estremecer todas as coisas que nos cercavam e retinir e deslocar os recipientes que se encontravam na despensa. A luz eclipsou-se e o sombrio vão da porta escureceu totalmente. Devemos ter permanecido ali durante muitas horas, agachados, silenciosos e trémulos, até não conseguirmos mais resistir ao sono...
Acordei finalmente, cheio de fome. Creio que a maior parte do dia se deve ter escoado antes de acordarmos. A minha fome itornou-se de um momento para o outro tão insistente que me forçou a agir. Disse ao cura que ia procurar comida e, tacteando, encaminhei-me para a despensa. Ele não me respondeu, mas quando comecei a comer, o débil ruído que produzia incitou-o a erguer-se, e ouvi-o rastejar atrás de mim.


II
O QUE VIMOS DA CASA ARRUINADA

Depois de comermos regressámos à copa, e devo ter dormitado novamente, pois quando olhei em volta achava-me sozinho. O ruído da vibração continuava com uma persistência monótona. Chamei o cura várias vezes, em voz baixa, e fui, tacteando, até à porta da cozinha. Ainda era dia, e avistei-o encostado à fenda triangular, pela qual se viam os marcianos. Tinha os ombros de tal modo curvados que a cabeça estava encoberta.
Ouvia um certo número de ruídos semelhantes aos produzidos numa casa de máquinas, e o terreno oscilava com a trepidação. Através da abertura da parede, divisava-se a copa de três árvores banhadas de ouro e do azul quente de um céu calmo ao entardecer. Observei o padre durante cerca de um minuto e em seguida aproximei-me, agachando-me e caminhando com um cuidado extremo sobre a louça partida que juncava o chão.
Toquei na perna do cura e ele estremeceu com tanta violência que uma porção de estuque deslizou e caiu com estrondo. Segurei-lhe o braço, receoso de que gritasse, e ficámos imóveis durante um longo momento. Em seguida, voltei-me para ver o que restava do nosso baluarte. O desprendimento do estuque tinha deixado uma fenda vertical nos escombros, e quando me ergui cuidadosamente sobre uma viga, vi, através desta brecha, aquilo que fora na tarde anterior uma tranquila estrada suburbana. Na realidade, era muito grande a transformação que sofrera.
O quinto cilindro devia ter caído mesmo no meio da casa onde entráramos em primeiro lugar. O edifício sumira-se, completamente destroçado, pulverizado e disperso pelo choque. O cilindro achava-se agora nos alicerces originais - enterrado num imenso buraco, mais largo do que o fosso que vira em Woking. Todo o terreno em volta tinha esparrinhado sob o tremendo impacte - esparrinhado era a palavra exacta - e acumulara-se em montões que escondiam os vultos das casas vizinhas. Parecia um tracto de lama a que se tivesse aplicado uma violenta martelada. A casa onde nos encontrávamos tinha aluído sobre as traseiras; a fachada da frente, mesmo no rés-do-chão, fora completamente destruída; por felicidade, a cozinha e a copa tinham escapado e achavam-se agora soterradas debaixo do solo e das ruínas, cercadas por todos os lados, salvo do lado do cilindro, por toneladas de terra.
Além disso, encontrávamo-nos agora suspensos à beira do fosso circular que os marcianos abriam. Era evidente que o ruído de pancadas fortes provinha de trás de nós, e um vapor de um verde brilhante subia continuamente, como um véu, através da fresta.
O cilindro já estava aberto no centro do fosso e, na margem mais distante deste, no meio dos arbustos despedaçados e cobertos de areia, encontrava-se, firme, alta, recortando-se no céu, uma das grandes máquinas de combate, abandonada pelo seu ocupante. De início, mal distingui o fosso e o cilindro, embora seja conveniente descrevê-los em primeiro lugar, por causa dos extraordinários engenhos reluzentes que trabalhavam na escavação e das estranhas criaturas que rastejavam lenta e penosamente por sobre os montões enlameados.
Foi um destes mecanismos, sem dúvida, que atraiu em primeiro lugar a minha atenção. Era um desses engenhos complicados a que se chama manipuladores, e cujo estudo deu um impulso tão grande à invenção terrestre. À primeira vista, parecia uma espécie de aranha metálica com cinco ágeis pernas
articuladas e um extraordinário número de alavancas, barras e tentáculos para alcançar e apresar, que lhes saíam do corpo. Quase todos os braços estavam contraídos, mas utilizava três compridos tentáculos para arrancar um certo número de hastes, chapas e barras que revestiam a cobertura do cilindro e lhe fortaleciam, aparentemente, as (paredes. À medida que as extraía depositava-as atrás de si, num tracto de terra plana.
Os seus movimentos eram tão rápidos, complexos e perfeitos, que não a julguei a princípio uma máquina, mau grado o seu brilho metálico. As máquinas de combate eram coordenadas e animadas com uma perfeição extraordinária, mas não se podiam de modo algum comparar a este engenho. As pessoas que nunca viram estas máquinas e apenas têm como guia os esforços da imaginação doentia dos artistas ou as descrições imperfeitas das testemunhas visuais dificilmente poderão compreender esta natureza viva.
Recordo em particular a ilustração de um dos primeiros panfletos destinados a dar uma visão das consequências da guerra. Era evidente que o artista tinha feito um estudo apressado de uma das máquinas de combate, e nisso se resumiam os seus conhecimentos. Representava-as como trípodes empinadas e rígidas, sem flexibilidade ou subtileza, conjuntamente com uma enganosa monotonia de efeito. O panfleto que continha estas informações teve uma voga considerável, e se o menciono aqui é com a única intenção de prevenir o leitor contra a impressão que pode ter criado. Essa ilustração não era mais parecida com os marcianos do que uma boneca holandesa com um ser humano. A meu ver, o panfleto teria sido mais útil se não a incluísse.
No primeiro momento, como afirmei, a manipuladora não me pareceu uma máquina, mas uma criatura semelhante a um caranguejo, com uma membrana reluzente; o controlador marciano, cujos tentáculos delicados controlavam os seus movimentos, pareceu-me simplesmente o equivalente à parte cerebral do caranguejo. Mas apercebi-me, depois, da semelhança da sua membrana cinzento-acastanhada, brilhante, com a dos outros corpos que se arrastavam pelo fosso, e compreendi a verdadeira natureza deste hábil operário. Nesse momento, a minha atenção desviou-se para as outras criaturas, os verdadeiros marcianos. Já os tinha visto de relance e a náusea inicial desvaneceu-se rapidamente. Além disso, eu estava oculto e imóvel, e não havia necessidade urgente de acção.
Eram, como via agora, as criaturas menos terrestres que se pode imaginar. Com enormes corpos redondos - ou melhor, cabeças - de cerca de 1,20 m de diâmetro, cada corpo tinha, à frente, um rosto. Este rosto era desprovido de fossas nasais - na realidade, os marcianos não pareciam possuir sentido do olfacto, mas tinham um par de olhos escuros muito grandes, e, precisamente entre estes, uma espécie de bico carnudo. Na parte posterior desta cabeça ou corpo - nem sei como lhe chamar - encontrava-se um único tímpano, estreito, conhecido anatomicamente como orelha, embora não se deva ter revelado muito útil na nossa atmosfera de ar denso. Agrupados em redor da boca achavam-se dezasseis tentáculos delgados, semelhantes a chicotes, dispostos em dois feixes de oito. Estes feixes foram denominados, com mais propriedade, pelo distinto anatomista professor Howes, de mãos. Mesmo quando vi os marcianos pela primeira vez, estes pareciam esforçar-se por se erguer sobre estas mãos, mas, sem dúvida, dado o maior peso na Terra, era-lhes impossível. Há razões para supor que em Marte caminhem sobre elas com relativa facilidade.
Como já foi mostrado pela dissecação, posso salientar que a anatomia interna era de uma simplicidade quase igual. A maior parte da estrutura era ocupada pelo cérebro, de onde derivavam enormes nervos para os olhos, orelha e tentáculos tácteis. A par destes, encontravam-se os volumosos pulmões (nos quais se abria a boca), o coração e as veias. Os simples movimentos convulsivos da pele exterior demonstravam o mau funcionamento pulmonar provocado pela maior densidade da nossa atmosfera.
E eram estes os órgãos dos marcianos. Por muito estranho que possa parecer a um ser humano, todo o complexo aparelho digestivo, que constitui a maior parte dos nossos corpos, não existia nos marcianos. Eram cabeças - meras cabeças. Não tinham entranhas. Não comiam, muito menos digeriam. Em vez disso, ingeriam o fresco e vivo sangue das outras criaturas, e injectavam-no nas suas próprias veias. Eu mesmo observei esta operação, como mencionarei na devida altura. Mas, embora vos possa parecer melindroso, não consigo obrigar-me a descrever aquilo a que nem sequer suportava assistir. Deve bastar dizer que o sangue obtido de um animal ainda vivo, na maioria dos casos de um ser humano, escorria directamente, por intermédio de uma pequena pipeta, para o canal recipiente...
A simples ideia deste facto causa-nos uma repugnância natural, mas, ao mesmo tempo, julgo que deveríamos pensar na repulsa que um coelho inteligente sentiria perante os nossos hábitos carnívoros.
As vantagens fisiológicas da prática da injecção são inegáveis, se pensarmos na tremenda perda de tempo e energia humanos originada pela função de comer e pelo processo digestivo. Metade do nosso corpo é constituída por glândulas, tubos e órgãos, que se ocupam na transformação de comida heterogénea em sangue. O processo digestivo e a sua reacção sobre o sistema nervoso aniquila a nossa força e confunde o nosso espírito. Os homens são felizes ou desgraçados consoante tenham fígados saudáveis ou doentes, ou glândulas gástricas sãs, mas os marcianos estavam acima de todas estas flutuações orgânicas de humor e de emoção.
A sua inegável preferência por homens como fonte de alimentação explica-se, em parte, pela natureza dos restos das vítimas que trouxeram com eles, como provisões, de Marte. Estas criaturas, a julgar pelos restos ressequidos que caíram em mãos humanas, eram bípedes com frágeis esqueletos siliciosos (quase iguais aos das esponjas siliciosas) e débil musculatura, com uma altura de 1,80 m e cabeças redondas, erectas, e grandes olhos em órbitas duras. Pareciam trazer dois ou três em cada cilindro, e foram todos mortos antes de chegarem à Terra. Tanto lhes fazia, pois o simples esforço de permanecer de pé sobre o nosso planeta teria quebrado todos os ossos dos seus corpos.
E uma vez que estou a fazer esta descrição, posso acrescentar mais alguns pormenores que, embora desconhecêssemos nessa época, ajudarão o leitor que os não conhece a formar uma imagem mais clara destes agressores.
A sua fisiologia diferia estranhamente da nossa em três outros aspectos. O seu organismo não dormia, tal como o coração do homem não dorme. Dado que não possuíam um mecanismo muscular extensivo que tivessem de recuperar, esse apagamento temporário da vida era-lhes desconhecido. Julga-se que tinham pouco ou nenhum sentido de fadiga. Na Terra, nunca se poderiam mover sem esforço; no entanto, mantiveram-se em acção até ao fim. Em vinte e quatro horas faziam vinte e quatro horas de trabalho, como se julga ser, entre nós, o caso das formigas.
Em segundo lugar, por maravilhoso que pareça num mundo sexual, os marcianos eram totalmente assexuados e, portanto, desprovidos de qualquer das tumultuosas emoções que derivam dessa diferença entre os homens. Um jovem marciano, com efeito - e este facto é decisivo -, nasceu na Terra durante a guerra, e achava-se profundamente ligado ao parturiente do qual desabrochara, precisamente como os bolbos desabrocham, ou os pequenos pólipos de água doce.
Este método de reprodução extinguiu-se entre os homens e em todos os animais terrestres superiores; no entanto, mesmo na Terra deve ter constituído o método primitivo. Entre os animais inferiores, mesmo nos primos em primeiro grau dos vertebrados, os tunicados, os dois processos ocorrem lado a lado, mas o método sexual sobrepõe-se por fim ao seu competidor. No entanto, em Marte, parece que a evolução se processou no sentido inverso.
É digno de nota que determinado escritor de ficção de reputação quase científica tenha previsto, muito antes da invasão marciana, que, no topo da sua evolução, os homens apresentassem uma estrutura não diferente das actuais características dos marcianos. Lembro-me de que a sua profecia apareceu em Novembro ou Dezembro de 1893 numa publicação póstuma, Pall Mali Budget, e que a sua caricatura foi publicada por um periódico pré-marciano intitulado Punch. Salientou - num tom de loucura, de facécia - que a perfeição dos utensílios mecânicos deve acabar por sobrepor-se aos membros, a perfeição dos dispositivos químicos à digestão; órgãos como o cabelo, nariz externo, dentes, orelhas e queixo já não constituíam partes essenciais do corpo humano, e que a tendência de selecção natural se inclinava para a sua pronta redução nas gerações futuras. Só o cérebro continuava a ser uma necessidade fundamental, e apenas uma outra parte do corpo tinha fortes probabilidades de sobrevivência; a mão, “professor e agente do cérebro”. Enquanto o resto do corpo se devia reduzir, as mãos tornar-se-iam maiores.
Há muita verdade que se escreve a brincar, e os marcianos são uma prova patente da supressão do lado animal do organismo pela inteligência. Não me custa acreditar que os marcianos descendam de seres não diferentes de nós próprios, por um desenvolvimento gradual do cérebro e das mãos (dando as últimas lugar, por fim, aos dois feixes de delicados tentáculos) à custa do resto do corpo. Sem este, o cérebro tornar-se-ia, sem dúvida, mera inteligência, desprovida por completo do substratum emocional do ser humano.
O último aspecto importante pelo qual os sistemas destas criaturas diferiam do nosso, poderia ser considerado por algumas pessoas um fenómeno muito trivial. Os microrganismos, responsáveis por tantas doenças e sofrimentos na Terra, nunca apareceram em Marte ou foram eliminados pela ciência sanitária marciana em épocas remotas. Uma centena de doenças, todas as febres e infecções de que sofremos, cancros, tumores e males semelhantes, não entraram nunca no esquema da sua vida. E, falando das diferenças entre a vida em Marte e a vida terrestre, posso aludir à curiosa propagação das plantas vermelhas.
Aparentemente, o reino vegetal de Marte, em lugar de ter como cor predominante o verde, é de uma coloração de um vívido vermelho-sangue. De qualquer modo, as sementes que os marcianos (intencional ou acidentalmente) trouxeram com eles, deram lugar, em todos os casos, a plantas vermelhas. No entanto, só a que é conhecida geralmente como papoila dos campos obteve algumas vitórias na competição com as formas terrestres. A trepadeira vermelha era, em absoluto, uma planta transitória, e poucas pessoas a viram crescer. No entanto, durante algum tempo, esta planta cresceu com um espantoso vigor e exuberância. Brotou das margens do fosso no terceiro ou quarto dia do nosso cativeiro, e os seus ramos, semelhantes a cactos, formaram uma franja de carmim nas vizinhanças da nossa janela triangular. Mais tarde, encontrei-a disseminada pela região, especialmente onde quer que houvesse uma corrente de água.
Os marcianos tinham o que parecia ser um órgão auditivo, um único tímpano redondo atrás da cabeça-corpo, e olhos com um alcance visual não muito diferente do nosso, excepto que, de acordo com Philips, o azul e o violeta eram para eles como o preto. Admite-se geralmente que comunicavam por intermédio de sons e de gestos dos tentáculos; esta opinião é secundada, por exemplo, pelo útil panfleto, embora compilado à pressa (escrito, evidentemente, por alguém que não foi testemunha visual das acções dos marcianos) a que já aludi e tem sido até agora a principal fonte de informações a seu respeito. Nenhum ser humano sobrevivente viu tanto dos marcianos em acção como eu. Não me cabe mérito algum, dado que foi um acidente, mas esse é o facto. E asseguro que os observei com minúcia e continuadamente e vi quatro, cinco e (uma vez) seis deles executando, com indolência e esmero, as mais complicadas operações sem que utilizassem sons ou gestos. A sua algazarra peculiar precedia invariavelmente a refeição; não tinha modulações e creio que não era de modo algum um sinal, mas simplesmente a expiração de ar preparatória da operação de sucção. Tenho a pretensão de possuir, pelo menos, alguns conhecimentos de psicologia, e estou convencido, neste caso - tão firmemente como estou convencido de qualquer coisa - que os marcianos trocavam entre si pensamentos sem qualquer interveniência física. E tenho esta convicção a despeito de fortes preconceitos. Antes da invasão dos marcianos, como é provável que algum leitor ocasional recorde, pronunciara-me com alguma violência contra a teoria telepática.
Os marcianos não usavam roupas. As suas concepções de adorno e decoro divergiam necessariamente das nossas e não só eram, evidentemente, menos sensíveis do que nós às mudanças de temperatura, como também as mudanças de pressão não parecem ter afectado, seriamente, a sua saúde. No entanto, apesar de não usarem vestuário, era noutros complementos artificiais dos seus recursos físicos que residia a sua grande superioridade sobre os homens. Nós, homens, com as nossas bicicletas e carros, as nossas máquinas voadoras Lilienthal, as nossas espingardas, etc, encontramo-nos precisamente no limiar da evolução que os marcianos sofreram. Tornaram-se praticamente meros cérebros, usando corpos diferentes conforme as suas necessidades, tal como um homem muda de fato e anda de bicicleta se está apressado, ou pega no guarda-chuva quando chove. e, de tudo isto, talvez nada seja mais maravilhoso do que o facto de estar ausente o factor dominante de quase todos os nossos progressos mecânicos - a roda. Entre todas as coisas que trouxeram consigo, não há indícios ou sugestão de que usem rodas. Esperar-se-ia, pelo menos, que as utilizassem na locomoção. E, relacionado com este facto, é curioso notar que mesmo a Natureza terrestre nunca descobriu a roda, nem preferiu outros expedientes para o seu desenvolvimento. E não só os marcianos ignoravam a roda (o que é inacreditável) ou se abstiveram de usá-la, como também fazem pouco uso, nos seus aparelhos, do eixo fixo, ou do eixo relativamente fixo, com movimentos circulares aproximadamente confinados a um plano. Quase todas as articulações das suas máquinas apresentam um sistema complicado de partes corrediças, movendo-se sobre pequenos rolamentos de fricção, mas admiravelmente encurvados. Ao mesmo tempo, para além deste aspecto de pormenor, é digno de nota que as compridas alavancas das suas máquinas sejam, na maioria dos casos, activadas por uma espécie de musculatura simulada dos discos, num estojo elástico; estes discos polarizam-se e unem-se firme e poderosamente quando são atravessados pela corrente eléctrica. Atingia-se, deste modo, o curioso paralelismo com os movimentos animais, tão pasmoso e inquietante para o observador humano. Estes quase-músculos abundavam na manipuladora semelhante ao caranguejo, que vira, pela primeira vez, no acto de abrir o cilindro. Ao pôr-do-sol, parecia infinitamente mais viva do que os verdadeiros marcianos que arquejavam, agitando tentáculos ineficazes e movendo-se com dificuldade depois da sua grande jornada através do espaço.
Quando observava os seus movimentos indolentes, e notava todos os pormenores estranhos que descrevi, o cura recordou-me a sua presença, puxando-me com violência pelo braço. Voltei-me e encarei um rosto carrancudo, de lábios silenciosos mas eloquentes. Queria servir-se da fenda, que só permitia que espreitasse um de cada vez; tive de renunciar por um momento à observação, enquanto ele gozava desse privilégio.
Voltei a olhar e vi que a atarefada manipuladora já tinha disposto várias das peças de aparelhos que retirara do cilindro numa forma que apresentava uma semelhança manifesta consigo mesma; e, abaixo, à esquerda, surgira uma pequena escavadora que esguichava baforadas de vapor verde e rodava em volta do fosso, escavando e carregando metodicamente. Era esta a causa do ruído de pancadas regulares e de choque ritmados que faziam estremecer o nosso arruinado refúgio. Chiava e sibilava enquanto trabalhava. Tanto quanto podia distinguir, não era manobrada por nenhum marciano.



III
OS DIAS DE CATIVEIRO

A chegada da segunda máquina de combate obrigou-nos a abandonar a fresta e a fugir para a copa, pois receávamos que os marcianos nos pudessem ver. Mais tarde, começámos a sentir-nos mais tranquilos a esse respeito, pois, para quem se encontrasse banhado pela deslumbrante luz do sol, o nosso refúgio deveria parecer uma escuridão confusa; mas, de início, a mais leve sugestão de se aproximarem impelia-nos em retirada para a copa, de coração a latejar. Por muito terrível que fosse o risco que corríamos já não conseguíamos resistir à atracção que a fresta exercia sobre nós. Causa-me espanto recordar que, a despeito do perigo de morrermos de inanição ou de sofrermos morte ainda mais terrível, disputávamos com violência o horrível privilégio de espreitar. Corríamos de um modo grotesco através da cozinha, divididos entre a avidez e o receio de fazer ruído, e batíamo-nos, em-purrávamo-nos e trocávamos pontapés, tudo isto no espaço de uns escassos metros.
Procedíamos deste modo, pois os nossos caracteres e os nossos hábitos de pensamento e acção eram absolutamente incompatíveis, e o perigo que corríamos e o nosso isolamento acentuavam ainda mais essa incompatibilidade. Já em Halliford começara a odiar as vãs e manhosas exclamações do cura, a sua estúpida rigidez mental. O interminável monólogo que ele proferia entre dentes não me permitia imaginar uma linha de acção. Houve momentos em que quase perdi a razão. Era tão falto de comedimento como uma mulher estúpida. Podia, até, chorar durante horas seguidas, e acredito sinceramente que esta criança amimada pela vida esteve sempre convencida de que as suas fracas lágrimas serviam de alguma coisa. Não me deixava em sossego. Comia mais do que eu, e era em vão que chamava a sua atenção para o facto de que a nossa única possibilidade de sobrevivência consistia em permanecer naquela casa até que os marcianos abandonassem o fosso; em breve, faltar-nos-ia comida. Comia e bebia impulsivamente, em refeições lautas, separadas por longos intervalos. Dormia pouco.
Com o decorrer dos dias, a sua negligência aumentou de tal modo a nossa tortura e o perigo que corríamos que me vi obrigado, por muito que isso me custasse, a recorrer a ameaças e, por fim, a bater-lhe. Isto restituiu-lhe a razão durante algum tempo. Mas era uma dessas fracas criaturas sem amor-próprio, timoratas, almas cheias de ódio, manhosas, que receiam Deus e os homens, que nem sequer ousam encarar a si mesmas.
Desagrada-me recordar e escrever estas coisas, mas relato-as para que nada falte à minha história. Deve ser fácil àqueles que escaparam aos aspectos sombrios e às facetas terríveis da vida condenar a minha brutalidade, os meus relâmpagos de cólera no epílogo da nossa tragédia. Conhecem o que está errado tão bem como qualquer pessoa, mas não aquilo que um homem torturado pode fazer. Mas, aqueles que atravessaram dias sombrios, aqueles que atingiram, por fim, as coisas mais elementares da vida, mostrar-se-ão mais compreensivos.
E, enquanto nos debatíamos com o desconhecido, sussurrávamos discussões obscuras, lutávamos pela comida e pela bebida, enquanto nos agarrávamos e esbofeteávamos - lá fora, sob o sol impiedoso desse terrível Junho, encontrava-se a estranha maravilha, a invulgar rotina dos marcianos no fosso. Vou retomar o fio da narrativa das minhas aventuras. Passado um longo momento, atrevi-me a regressar à fresta e descobri que os marcianos tinham sido reforçados pelos ocupantes de, pelo menos, duas das máquinas de combate. Estes últimos tinham trazido mais utensílios, os quais se encontravam arrumados com certa ordem nas proximidades do cilindro. A segunda manipuladora já estava pronta e ocupava-se no serviço de uma das novas engenhocas trazidas pela grande máquina. Tinha uma aparência de conjunto semelhante à de uma vasilha de leite, por cima da qual oscilaria um receptáculo em forma de pêra, do qual escorria uma poeira esbranquiçada para uma bacia circular que se encontrava por baixo.
O movimento pendular era comunicado a este conjunto por um tentáculo da manipuladora que, com duas mãos espatuladas, desenterrava massas de argila e as arremessava para o receptáculo em forma de pêra, enquanto com outro tentáculo abria, periodicamente, uma porta e removia os tijolos grossos e enegrecidos que se acumulavam na parte central da máquina. Outro tentáculo, acerado, conduzia o pó desde a bacia, ao longo de um canal estriado, até um presumível receptáculo oculto por um montão de poeira azulada. Deste recipiente invisível elevava-se, verticalmente, na quietude do ar, uma pequena espiral de fumo verde. Neste momento, a manipuladora, com um fraco tinido musical, dilatava, à maneira de um telescópio, um tentáculo que fora antes uma mera projecção grosseira, até que o extremo deste desapareceu, por fim, atrás de um montão de argila. Logo a seguir, surgia à minha vista uma barra de alumínio branco de pureza inigualável, depositando-a numa pilha cada vez maior de barras que se encontravam ao lado do fosso. Desde o pôr-do-sol até noite cerrada, esta máquina deve ter feito, com argila crua, mais de uma centena de barras semelhantes. O monte de poeira azulada cresceu rapidamente até atingir a margem do fosso.
Havia um contraste nítido entre os movimentos rápidos e complexos destas engenhocas e o arquejar desgracioso e apático dos seus operadores, e durante dias tive de repetir a mim mesmo que, na realidade, eram estes últimos os seres vivos.
O cura detinha a posse da fresta quando chegaram ao fosso os primeiros marcianos. Eu estava sentado; acotovelei-o, de ouvido atento. Recuou de súbito e, receando que nos descobrissem, agachei-me, num espasmo de terror. O seu vulto indistinto deslizou sobre a caliça e rastejou até mim, gesticulando. Partilhei o seu pânico durante alguns momentos. Os seus gestos sugeriam que renunciara à fresta e, passados momentos, instigado pela curiosidade, passei por ele e voltei à fresta. Nos primeiros momentos, não vi nada que justificasse o seu estranho comportamento. Já era crepúsculo, as estrelas mal se apercebiam, mas o fosso era iluminado pelas chamas verdes, vacilantes, produzidas pela fabricação do alumínio. A imagem do conjunto era uma forma bruxuleante de clarões verdes e sombras negras que se deslocavam e cansavam a vista. Por cima de tudo e por todo o lado, pairavam descuidadamente alguns morcegos. Já não se viam os marcianos, pois o montão de poeira azul-esverdeada crescera até os ocultar. Uma máquina de combate, com as pernas contraídas, dobradas e atrofiadas, encontrava-se atravessada no fosso. E então, no meio do clangor dos maquinismos, sobressaiu um pequeno coro de vozes humanas que rapidamente se extinguiu.
Agachei-me, observando, atentamente, a máquina de combate. Pela primeira vez, estava convencido de que esta continha um marciano no bojo, pois quando as chamas verdes subiam via-lhe o clarão oleoso da membrana e o brilho dos olhos. Bruscamente, ouvi um alarido e vi que um comprido tentáculo passava por cima do ombro da máquina em direcção à pequena gaiola que lhe pendia das costas. Em seguida, uma coisa - algo que se debatia com violência- foi erguida, um enigma negro e indistinto, banhado pela luz das estrelas; à medida que este objecto negro descia, apercebi-me, à luz do clarão esverdeado, de que era um homem. Por um momento, viu-se nitidamente. Era um homem de meia-idade, robusto, rosado, bem vestido; três dias antes devia correr o mundo, devia tratar-se de um homem de importância considerável. Via-lhe os olhos espantados e as cintilações dos botões da camisa e da corrente do relógio. Desapareceu atrás do montão, e fez-se silêncio durante alguns momentos. E então começou a ouvir-se uma algazarra aguda, contínua e alegre dos marcianos.
Desci, esforcei-rne por me pôr de pé, tapei os ouvidos com as mãos e fechei-me na copa. O padre, que estivera agachado em silêncio, com os braços à volta da cabeça, olhou para cima quando passei, censurou-me em voz muito alta por tê-lo abandonado e correu na minha peugada.
Nessa noite, escondidos na despensa, fomos assaltados, simultaneamente, pelo terror e pela terrível fascinação que a fresta exercia sobre nós; embora sentisse uma necessidade urgente de agir, não consegui conceber nenhum plano de fuga, mas, mais tarde, no segundo dia, achei-me em condições de avaliar a nossa posição com maior clareza. O cura achava-se absolutamente incapaz de discutir; a recente e culminante atrocidade roubara-lhe todos os vestígios de razão ou de antevisão. Descera praticamente ao nível de um animal. Mas, como ia dizendo, deitei as mãos à cabeça. Mal rne vi em condições de enfrentar os factos, fiquei cada vez mais certo de que, por muito terrível que fosse a nossa situação, não se justificava, no entanto, um desespero absoluto. A nossa melhor oportunidade dependia de os marcianos estacionarem temporariamente no fosso. Ou, ainda que o ocupassem permanentemente, poderiam não considerar necessário guardá-lo, e teríamos deste modo uma possibilidade de fuga. Ponderei igualmente com muito cuidado a hipótese de escavarmos um túnel que nos conduzisse para lá do fosso, mas as possibilidades de emergirmos à vista de alguma máquina de combate de sentinela pareceram-me, de início, muito grandes.
Foi no terceiro dia, se a memória não me falha, que vi o cadáver do homem. Foi essa a única ocasião em que assisti à refeição dos marcianos. Depois desta experiência, evitava o buraco da parede durante a maior parte do dia. Entrei na copa, tirei a porta e escavei o solo durante algumas horas com a machadinha, tão silenciosamente quanto era possível; no entanto, depois de abrir um buraco de cerca de sessenta centímetros de profundidade, não me atrevi a continuar. Faltou-me a coragem, e fiquei estendido no chão da copa durante muito tempo, sem forças sequer para me mover. Em seguida, abandonei por completo a ideia do túnel como meio de fuga.
Diz muito acerca da impressão que os marcianos me provocaram o facto de sentir inicialmente poucas ou nenhumas esperanças de fuga, sugestionado pela inutilidade de todos os esforços que os homens tinham feito para se lhes opor. Mas, na quarta ou quinta noite ouvi um ruído semelhante ao disparo da artilharia pesada.
A noite já estava muito adiantada, e a lua brilhava vivamente. Os marcianos tinham levado a escavadeira e, com excepção de uma máquina de combate que se encontrava na margem mais afastada do fosso e de uma manipuladora oculta num recanto, muito perto da fresta, tinham abandonado o local. Salvo o brilho lívido da manipuladora e das barras e os remendos brancos do luar, o fosso achava-se mergulhado na escuridão e, sem contar com o tinido da manipuladora, absolutamente silencioso. Essa noite apresentava-se de uma bela serenidade. A Lua parecia repartir a posse do céu com um único planeta. Ouvi o uivar de um cão, e foi esse som familiar que me fez prestar atenção a todos os rumores. Em seguida, ouvi, com muita nitidez, um estrondo precisamente igual ao que é provocado pelo disparo de canhões de grande calibre. Ouvi seis estampidos distintos, e, escoado um longo intervalo, outros seis. E foi tudo.


IV A MORTE DO COADJUTOR

Foi no sexto dia do nosso cativeiro que utilizei pela última vez a fresta, e nesta ocasião achava-me sozinho. Em lugar de se agarrar a mim e de tentar desalojar-me da fenda, o coadjutor voltara para a despensa. Fui assaltado por um súbito pressentimento. Regressei rapidamente e em silêncio à despensa. Na escuridão, ouvi-o a beber. Tacteei, às escuras, e os meus dedos apalparam uma garrafa de borgonha.
Lutámos durante alguns minutos. A garrafa caiu no chão e partiu-se; desisti e levantei-me. Arquejávamos. Ameaçámo-nos um ao outro. Por fim, inter-pus-me entre ele e a comida, e informei-o da minha determinação de fazer respeitar uma disciplina daí em diante. Dividi a comida da despensa em rações, de modo a durar dez dias. Não o deixaria comer mais nesse dia. De tarde, ele fez um débil esforço para alcançar a comida. Eu estivera a dormitar, mas acordei imediatamente. Ficámos sentados frente a frente durante o resto do dia e toda a noite; eu sentia-me cansado mas resoluto, enquanto ele chorava e se lamentava de uma fome imediata. Sei que foi uma noite e um dia mas pareceu-me - continua a parecer-me - uma extensão interminável de tempo.
Deste modo, a nossa profunda incompatibilidade redundou por fim em conflito aberto. Durante dois longos dias altercámos em voz baixa. Por vezes, furioso, bati-lhe e dei-lhe pontapés; outras, adulei-o e tentei persuadi-lo, e de uma vez tentei seduzi-lo com a última garrafa de borgonha, pois, como havia uma bomba, poderia conseguir água. Mas nem a força nem a delicadeza triunfaram; na realidade, ele achava-se muito longe da razão. Não desistiria de lutar pela comida nem da sua barulhenta tagarelice. Não observaria as precauções mais elementares para que o nosso cativeiro fosse suportável. Comecei a compreender gradualmente a completa ruína da sua inteligência, a aperceber-me de que o meu único companheiro nesta escuridão cerrada e doentia era um louco.
Lembro-me confusamente de que delirei por vezes. Sempre que dormia tinha sonhos estranhos e horrendos. Parece um paradoxo, mas julgo que a fraqueza e a insanidade mental do padre foram um aviso para mim, fortaleceram-me e permitiram-me continuar são.
No oitavo dia deixou de murmurar e começou a falar em voz alta, e a única coisa que eu podia fazer era moderar as suas dissertações.
- É justo, meu Deus!-dizia, repetidas vezes. - É justo. Que o castigo recaia sobre mim e sobre os meus. Nós pecámos, não cumprimos o nosso dever. Havia pobreza, sofrimento; os pobres eram calcados sobre o pó, e eu defendi a minha paz. Preguei tolices agradáveis - meu Deus, que tolices! - quando deveria erguer-me, ainda que isso me custasse a vida, e ter gritado que se arrependessem - arrependessem!... Opressores dos pobres e dos necessitados!... O lagar de Deus!
Voltou de súbito ao tema da comida que eu lhe tinha recusado. Rezou, implorou, chorou e acabou por proferir ameaças. Começou a altear a voz - roguei-lhe que não o fizesse. Descobriu-me um ponto fraco - ameaçou gritar e atrair os marcianos. Esta ameaça assustou-me durante algum tempo. Mas qualquer concessão teria diminuído incalculavelmente as nossas possibilidades de fuga. Desafiei-o, embora não tivesse a certeza de que não cumpriria a sua ameaça. De qualquer modo, não o fez nesse dia. Falou durante a maior parte do oitavo dia e do nono - ameaças, súplicas, de mistura com uma torrente de arrependimentos, vãos e semiloucos, pelas vergonhosas faltas que cometera ao serviço de Deus, de tal modo que tive pena dele. Em seguida, dormiu durante algum tempo e recomeçou com as forças renovadas, tão alto que fui obrigado a fazer com que se calasse.
- Cale-se! - implorei.
Ele estivera sentado perto da caldeira, mas ergueu-se ao ouvir-me.
Calei-me durante tempo demasiado - exclamou, num tom que deve ter atingido o máximo - e agora tenho de pedir perdão à minha testemunha. Maldita seja esta cidade infiel! Malditos! Malditos! Malditos! Malditos! Malditos sejam os habitantes da Terra, por causa das outras vozes da trombeta...
Cale-se - gritei, levantando-me apavorado ao pensar que os marcianos nos podiam ouvir. - Por amor de Deus...
Não - gritou-me ele, tão alto quanto pôde, erguendo-se completamente e abrindo os braços. - Eu ouço a palavra de Deus!
Em três passadas, alcançou a porta da cozinha.
- Tenho de pedir perdão à minha testemunha!
Vou! Já foi por demais adiado!
Libertou-se da minha mão e tacteou o cutelo de carne que estava pendurado. Segui-o imediatamente. O medo enfurecera-me. Alcancei-o antes que atravessasse metade da cozinha. Com uma última parcela de humanidade, peguei pela lâmina e bati-lhe com o cabo. Caiu de cabeça para baixo e ficou estendido no chão. Tropecei no corpo, arquejante. Continuou imóvel.
De súbito, ouvi um ruído proveniente do exterior, de cal a escorregar e a ser esmagada, e a abertura triangular da parede escureceu. Olhei para cima e divisei a parte de baixo de uma manipuladora aproximando-se lentamente do buraco. Um dos membros de preensão ziguezagueou através dos destroços; surgiu outro membro, abrindo caminho por entre as vigas derrubadas. Fiquei petrificado, atónito. Divisei em seguida, através de uma espécie de chapa de vidro, junto ao corpo, o rosto, se assim o podemos chamar, e os grandes olhos escuros de um marciano, espreitando: depois, um tentáculo, como que uma comprida serpente metálica, abriu caminho vagarosamente através do buraco.
Voltei para trás, penosamente, tropecei no padre e parei à porta da copa. O tentáculo achava-se agora dois metros ou mais dentro da sala, torcia-se e girava, com movimentos súbitos e singulares, de um lado para o outro. Durante alguns momentos, fiquei fascinado por esta marcha lenta e espasmódica. Em seguida, soltando um grito fraco e rouco, fiz um esforço para atravessar a copa. Tremia violentamente; mal conseguia endireitar-me. Abri a porta da carvoeira e mergulhei na escuridão, com o olhar fixo no vão da porta da cozinha, na penumbra, de ouvido atento. Teria sido visto pelo marciano? Que estaria ele a fazer agora?
Então, tornei a ouvir o fraco tinido metálico. Imaginei-o a abrir caminho, lentamente, através da cozinha. Já o ouvia mais perto - talvez na copa. Pensei que o seu comprimento não devia chegar para que me alcançasse. Rezei. Passou, raspando levemente na porta da carvoeira. Seguiu-se um período de expectativa quase intolerável; ouvi-o, em seguida, a remexer no trinco. Tinha encontrado a porta! Os marcianos sabiam o que eram portas!
Manobrou a lingueta durante cerca de um minuto e a porta abriu-se, por fim.
Por causa do escuro, mal conseguia ver aquilo - mais parecido com a tromba de um elefante do que com qualquer outra coisa-, ondulando na minha direcção, tacteando e examinando a parede, pedaços de carvão, madeira e tecto. Era como que uma minhoca negra agitando a cabeça cega de um lado para o outro.
De uma vez chegou a tocar no tacão da minha bota. Durante alguns instantes, não ouvi os ruídos do tentáculo. Parecia que se tinha retirado. Neste momento, prendeu qualquer coisa com um clique abrupto - pensei que fosse eu!-e pareceu sair de novo da carvoeira. Só sosseguei um minuto depois. Aparentemente, levara um pedaço de carvão para examinar.

Aproveitei a oportunidade para mudar ligeiramente de posição, pois sentia-me comprimido, e esperei de novo, às escuras. Murmurava sentidas preces pela minha salvação.
Ouvi novamente o ruído, leve, provocado por algo que rastejava na minha direcção. Aquilo aproximava-se lentamente, raspando nas paredes e chocando com os móveis.
Cheio de dúvidas, ouvi-o bater com violência na porta da carvoeira e fechá-la. Encaminhou-se para a despensa: as latas de biscoitos ressoaram e partiu-se uma garrafa, seguindo-se uma forte pancada na porta da carvoeira. Depois, silêncio, e uma expectativa infinita.
Teria partido?
Convenci-me, por fim, de que fora isso que acontecera.
Não voltou à copa; no entanto, não saí daquela escuridão cerrada durante todo o décimo dia, soterrado sob carvão e madeira, sem me atrever sequer a arrastar-me para saciar a sede que me devorava. Só ousei abandonar o meu esconderijo no décimo primeiro dia.


V
O SOSSEGO

Antes de entrar na despensa, a primeira coisa que fiz foi trancar a porta que separava a cozinha da copa. Mas a despensa estava vazia; todas as sobras de comida tinham desaparecido. Aparentemente, o marciano retirara tudo no dia anterior. Quando fiz esta descoberta, senti-me, pela primeira vez, desesperado. No décimo primeiro e no décimo segundo dia não comi nem bebi.
A princípio, tinha a boca e a garganta ressequidas e as minhas forças declinavam sensivelmente. Sentei-me na copa, às escuras, sentindo-me desesperadamente infeliz. Estava obcecado pela ideia da comida. Julgava que tinha ensurdecido, pois os ruídos do fosso, que estava habituado a ouvir, tinham cessado totalmente. Se me achasse com forças suficientes para deslizar silenciosamente até à fresta, tê-lo-ia feito.
No décimo segundo dia, doía-me tanto a garganta que resolvi correr o risco de alertar os marcianos; utilizei a bomba de água, que se encontrava perto da pia, e bebi dois copos de água negra e empestada. Senti-me bastante refrescado e mais animado, pois nenhum tentáculo surgira após o ruído chiante do bombear.
Pensei muito, durante estes dias, desconexa e inconclusivamente, acerca do coadjutor e de como morrera.

No décimo terceiro dia bebi mais alguma água, dormitei e pensei intermitentemente em comer e em vagos e impossíveis planos de fuga. Quando dormia sonhava com fantasmas horríveis, com a morte do padre ou com jantares sumptuosos; mas, acordado ou a dormir, sentia uma dor penetrante que me instava a beber continuadamente. A luz que entrava na copa já não era acinzentada, mas vermelha. Na minha imaginação tão transtornada parecia a cor do sangue.
No décimo quarto dia entrei na cozinha e fiquei surpreendido ao verificar que a folhagem das plantas vermelhas crescera através do buraco da parede, transformando a penumbra da sala numa obscuridade de tom carmesim.
Foi no princípio do décimo quarto dia que ouvi uma curiosa sequência de sons familiares, provenientes da cozinha; prestei atenção e identifiquei-os com o farejar de um cão. Quando entrei na cozinha, vi o focinho de um cão a espreitar através de uma fenda entre as ramagens rubras. Fiquei muito surpreendido. Ao ver-me, ladrou um pouco. Pensei que, se conseguisse induzi-lo a aproximar-se calmamente, poderia matá-lo e comê-lo; e, de qualquer modo, seria aconselhável matá-lo, antes que chamasse a atenção dos marcianos.
Rastejei na sua direcção, proferindo meigamente: “Cãozinho!”; mas ele retirou de súbito a cabeça e recuou.
Pus-me à escuta - não estava surdo - mas o fosso achava-se silencioso. Ouvi um som semelhante ao adejar das asas dos pássaros, e um grasnido roufenho, e foi tudo.
Permaneci colado à fresta durante muito tempo, mas não me atrevia a remover as plantas vermelhas que a obstruíam. Ouvi, uma ou duas vezes, um débil ruído de passos, como de um cão indo e vindo na areia, ao longe, e ruídos de pássaros, mas nada mais. Passado um longo momento, encorajado pelo silêncio, olhei para fora.
Com excepção do local onde uma multidão de corvos saltitava e lutava por cima do crânio da cabeça que os marcianos tinham sugado, não havia no fosso nenhuma coisa viva.
Fiquei atónito, mal acreditando no que os meus olhos viam. Todas as máquinas tinham desaparecido. Salvo o grande monte de poeira de um azul-acinzen-tado que se via num dos cantos, algumas barras de alumínio noutro, os corvos e os restos do assassinado, o sítio era apenas um fosso circular, vazio, escavado na areia.
Constrangi-me a sair, atravessando lentamente as plantas vermelhas, e detive-me perto do monte de cascalho. Podia ver em todas as direcções, salvo para trás de mim, para o norte, e não se via nenhum marciano nem indícios deles. O fosso abria-se abruptamente aos meus pés, mas uma vereda entre o entulho fornecia uma rampa praticável para o topo das ruínas. Chegara a minha oportunidade de fuga. Comecei a tremer.
Hesitei durante alguns instantes e, depois, num gesto de resolução desesperada, de coração a palpitar violentamente, trepei ao cimo do montão de terra sob o qual estivera durante tanto tempo soterrado.
Olhei de novo em redor. Também não se via nenhum marciano a norte.
Da última vez que vira esta parte de Sheen, de dia, era uma rua desviada, de confortáveis casas vermelho e branco, entremeadas por árvores de vasta sombra. Agora, tudo se resumia num amontoado de alvenaria em pedaços, argila e cascalho, sobre os quais se multiplicavam multidões de plantas vermelhas em forma de cactos, à altura do joelho, sem que alguma solitária planta terrestre lhes disputasse o terreno. À minha volta, as árvores estavam mortas e acastanhadas, mas para lá de uma rede de filamentos vermelhos erguiam-se troncos ainda vivos.
Todas as casas vizinhas tinham sido destruídas, mas nenhuma delas ardera; as paredes mantinham-se, por vezes até ao segundo andar, mas as janelas estavam despedaçadas e as portas esmigalhadas. As plantas vermelhas cresciam luxuriantemente nas suas salas destelhadas. Na minha frente havia o grande fosso, onde os corvos disputavam a sua presa. Na expectativa, entre as ruínas, achava-se um certo número de outros pássaros. Ao longe, um gato descarnado fugia, rente a uma parede, mas não havia qualquer vestígio de presença humana.
Em contraste com a minha recente prisão, o dia parecia de um brilho deslumbrante, o céu de um azul resplandecente. Uma leve brisa fazia ondular docemente as plantas vermelhas que brotavam de todo o baldio. Oh! E como o ar era ameno!


VI
O TRABALHO DE QUINZE DIAS

Fiquei durante algum tempo na colina, hesitante, indiferente à minha segurança. No antro insalubre de onde emergira só pensara, intensamente, acerca da nossa segurança imediata. Não compreendia o que acontecera ao mundo, não antevira esta visão aterradora de coisas estranhas. Esperava ver Sheen em ruínas - deparava-se-me, à minha volta, a paisagem sobrenatural de um outro planeta.
Vivi nesse momento uma emoção que ultrapassava a vulgar medida humana, bem conhecida, no entanto, dos pobres animais que dominamos. Sentia-me como um coelho ao regressar à toca, dando de súbito com o trabalho de uma dúzia de cabouqueiros atarefados a escavar os alicerces de uma casa. Era o primeiro indício de uma realidade que se ia clarificando no meu espírito e que me oprimiu durante muitos dias, uma sensação de destronamento, uma convicção de que já não era um senhor, mas um animal entre os animais, espezinhado pelos marcianos. Para nós, como para aqueles, tratava-se de esconder e espreitar, de fugir e esconder; passara a época em que os homens eram receados, e do seu império.
Mas mal dei conta deste estranho facto, ele esfumou-se, e o meu pensamento dominante tornou-se a fome provocada pelo longo e sombrio jejum. Avistei, longe do fosso, do outro lado de um muro pintado de encarnado, um tracto de verdura que não fora queimada. Isto deu-me uma ideia: avancei por entre a erva vermelha que me dava pelos joelhos e, por vezes, me chegava até ao pescoço. A densidade da erva dava-me a sensação tranquilizante de que estava oculto. O muro tinha dois metros de altura e verifiquei que não poderia, como julgara, saltar por cima dele. Assim, contornei-o até alcançar um local onde havia um rochedo que me permitiria trepar até ao topo, e caí no jardim que cobiçava. Encontrei algumas cebolas novas, um par de bolbos de gladíolo, uma certa quantidade de cenouras verdes, e guardei tudo; em seguida, saltei por cima de um muro em ruínas e desemboquei na vereda que conduzia a Kew através de árvores escarlate e carmesim - era como passear numa avenida de gigantescas gotas de sangue - obcecado por duas ideias: arranjar mais comida e afastar-me, tão depressa e tão longe quanto as minhas forças o permitissem, desta amaldiçoada e sobrenatural região onde se achava o fosso.
Mais adiante, num local relvado, brotavam alguns cogumelos que também devorei, e alcancei depois um lençol castanho de água de pouca altura, antigamente rodeado de veigas. Estes bocados de comida apenas serviram para exacerbar a fome que sentia. A princípio, surpreendeu-me este caudal num Verão quente e seco. mas descobri mais tarde que era provocado pela exuberância tropical das plantas vermelhas. Conjuntamente com este crescimento extraordinário, ao encontrarem água, tornavam-se imediatamente gigantescas e de uma fecundidade sem paralelo. Bastou que as suas sementes se espalhassem nas águas do Wey e do Tamisa: o seu rápido crescimento fez com que gigantescas ramagens fluviais obstruíssem rapidamente ambos os rios.
Em Putney, como mais tarde verifiquei, a ponte quase desaparecia num emaranhado destas plantas, e também em Richmond a água do Tamisa fluía numa corrente larga e de pouca altura entre as várzeas de Hampton e Twickerham. As plantas brotavam onde quer que a água escorresse, e as villas em ruínas do vale do Tamisa ficaram ocultas durante largo tempo neste pântano vermelho, cujas margens explorei; deste modo se ocultavam muitos dos estragos que os marcianos tinham provocado.
Por fim a vegetação vermelha sucumbiu quase tão rapidamente como tinha brotado. Foi aniquilada em breve por uma doença gangrenosa, que se devia, julga-se, à acção de uma certa bactéria. Nos nossos dias, graças a uma selecção natural, todas as plantas terrestres adquiriram o poder de resistirem às doenças bacteriológicas - nunca sucumbem sem uma luta violenta -, mas a vegetação vermelha apodrecia como uma coisa que já estivesse morta. As ramadas embranqueceram, engelharam e quebraram-se. Partiam-se ao menor contacto, e as águas que tinham estimulado o seu rápido crescimento arrastavam para o mar os seus últimos vestígios.
O meu primeiro acto ao chegar a estas paragens foi, naturalmente, saciar a sede. Bebi muita água e, movido por um impulso, roí algumas folhas das plantas vermelhas; mas eram aguadas e tinham um gosto doentio e metálico. Verifiquei que a água levava altura bastante para que a atravessasse com segurança, embora a vegetação vermelha me estorvasse um pouco; mas era evidente que o caudal se tornava mais profundo à medida que me aproximava do rio, e voltei para Mortlake. Consegui localizar a estrada por meio das ruínas ocasionais das suas vivendas, vedações e candeeiros. Assim, afastei-me da inundação e segui em direcção à colina, subindo para Roe-hampton, e desemboquei em Putney Common.
O cenário, aqui, perdia as características de estranheza e exotismo e resumia-se a uma acumulação de destroços de coisas familiares: porções de solo exibiam a devastação provocada por um ciclone, mas alguns metros adiante havia espaços completamente tranquilos, casas com as persianas cuidadosamente descidas e portas fechadas, como se os seus moradores as tivessem deixado por um dia, ou estivessem a dormir. A vegetação vermelha era menos abundante; as árvores altas que se erguiam ao longo da rua estavam livres das trepadeiras vermelhas. Procurei comida por entre as árvores, em vão, e fiz também uma incursão em duas casas silenciosas, mas já tinham sido violadas e saqueadas. Permaneci durante o resto do dia num pequeno bosque, pois que o meu estado de fadiga me impedia de continuar.
Durante todo este tempo não descobri nenhum ser humano nem indícios de marcianos. Encontrei dois cães com aspecto famélico, mas ambos se desviaram rapidamente quando me tentei aproximar. Perto de Roehampton, vi dois esqueletos humanos - não corpos, mas esqueletos, limpos - e no bosque vizinho encontrei os ossos esmagados e dispersos de vários gatos e coelhos e o crânio de um carneiro. Mas, embora roesse parte deles, não consegui aproveitar nada.
Depois do pôr-do-sol, caminhei penosamente ao longo da estrada para Putney, onde pensava que o Raio da Morte fora utilizado. E, passado Roehampton, descobri, num jardim, batatas ainda não maduras, em quantidade suficiente para enganar a fome. Do jardim, observei Putney e o rio. O aspecto da região, mergulhada em poeira, era singularmente desolador: árvores enegrecidas, ruínas negras e sombrias e, no sopé da colina, o rio transbordava, tinto de vermelho pelas plantas. E, por sobre tudo - silêncio. Fui presa de um terror indescritível ao pensar na rapidez com que se operara esta desoladora transformação.
Durante breves instantes, julguei que a Humanidade sucumbira e eu estava ali sozinho: o último homem vivo. Perto do topo de Putney Hill, encontrei outro esqueleto, com os braços separados e a alguns metro de distância do resto do corpo. À medida que caminhava, estava cada vez mais convencido de que a exterminação da Humanidade fora total nesta parte do mundo, salvo o caso de alguns vagabundos como eu próprio. Julgava que os marcianos tinham prosseguido e abandonado esta região, procurando comida noutro sítio. Talvez destruíssem, neste momento, Berlim ou Paris, ou tivessem partido em direcção ao norte.


VII
O HOMEM DE PUTNEY HILL

Passei aquela noite na estalagem que se encontra no topo de Putney Hill e, pela primeira vez desde a minha fuga para Leatherhead, dormi numa cama. Não vou referir-me às vãs preocupações que senti ao forçar a entrada naquela casa-descobri depois que a porta da frente estava trancada - nem como percorri todas as salas à procura de comida até que, à beira do desespero, descobri uma côdea mordida pelos ratos e duas latas de ananases, num aposento que devia ser o quarto da criada. A casa já tinha sido explorada e esvaziada. Mais tarde, encontrei no bufete alguns biscoitos e sanduíches que tinham passado despercebidos. Não pude comer estas últimas, pois estavam demasiado apodrecidas mas os biscoitos não só me saciaram a fome como enchi os bolsos com eles. Receando que alguns marcianos pudessem andar a esquadrinhar aquela parte de Londres, não acendi nenhuma lâmpada, de noite, para procurar comida. Antes de me deitar tive um intervalo de desassossego e corri de janela para janela, procurando vislumbrar qualquer indício dos monstros. Dormi pouco. Já deitado, dei comigo a pensar continuamente - uma coisa que não me lembrava de fazer desde a última discussão que tivera com o padre. Durante todo o período de tempo intermédio, a minha situação mental resumira-se numa sucessão apressada de confusos estados emocionais ou uma espécie de receptividade estúpida.

Mas, de noite, o meu cérebro, provavelmente reforçado pelos alimentos que ingerira, serenou e pude pensar.
Três coisas disputaram a posse da minha mente: a morte do cura, a localização provável dos marcianos e o destino da minha mulher. A recordação da primeira não me trouxe nenhuma sensação de horror ou remorsos; encarei-a, simplesmente, como algo que pertencia ao passado, uma recordação infinitamente desagradável, mas totalmente desprovida de qualquer sombra de remorso. Tal como agora, ao recordar este facto, via-me conduzido, passo a passo, para aquele golpe precipitado, vítima de uma sequência de acontecimentos que me tinham arrastado inevitavelmente. Não me julgava digno de castigo, mas a recordação, estática, obcecou-me. No silêncio da noite, com aquele sentido da proximidade de Deus, perceptível, por vezes, no silêncio e no escuro, submeti-me a julgamento, o meu único julgamento, por aquele instante de furor e de medo. Recordei todas as palavras que trocámos, desde o momento em que o encontrei sentado ao meu lado, indiferente à minha sede, observando as chamas e o fumo que se erguiam das ruínas de Weybridge. Não fôramos capazes de cooperar um com o outro - a má sorte não o permitiu. Se eu prevesse o que se iria passar, tê-lo-ia abandonado em Halliford. Mas não adivinhei. Mencionei este facto, como o resto da história, tal como aconteceu. Não havia testemunhas - podia guardar segredo de todas estas coisas. Mas transcrevi-as, e o leitor poderá julgar-me como quiser.
E quando afastei a custo a imagem daquele corpo prostrado, encarei o problema dos marcianos e do destino da minha mulher. Não dispunha de dados respeitantes ao primeiro; podia imaginar uma centena de coisas, e o mesmo acontecia, infelizmente, em relação ao último. E, de súbito, aquela noite tornou-se terrível. Dei comigo sentado na cama, de olhos fixos na escuridão, a rezar para que o Raio da Morte a tivesse aniquilado rapidamente e sem dor. Não rezava desde a noite em que regressara de Leatherhead. Murmurara preces, feitiços, rezava como um pagão ao murmurar os seus sortilégios quando me encontrava em perigo de morte iminente. Mas rezava verdadeira e racionalmente, frente a frente com Deus. Que noite estranha! O mais estranho de tudo foi que mal surgiu a aurora, eu, que falara com Deus, rastejei para fora de casa como um rato ao abandonar o buraco - uma criatura um pouco maior, um animal inferior, uma coisa que podia ser perseguida e morta por qualquer capricho passageiro dos seus amos. Talvez também os ratos rezem com fé em Deus. Esta guerra ensinou-nos, pelo menos, a piedade - piedade por aquelas criaturas desgraçadas, sujeitas ao nosso domínio.
O dia amanheceu belo e luminoso, e a oriente o céu reluzia, cor-de-rosa, e adomava-se de pequenas nuvens douradas. Na estrada que desce do topo de Putney Hill até Wimbledon, via-se um certo número de tristes vestígios da torrente de pânico que deve ter inundado a região londrina na noite do domingo que se seguiu ao começo da batalha. Uma pequena carroça de duas rodas, matriculada em nome de Thomas Lobb, Greengrocers, New Malden, com uma roda partida e uma mala de lata abandonada; um chapéu de palha espezinhado sobre a lama endurecida e, no topo de West Hill, uma porção de corpos manchados de sangue, perto de um alguidar de água, virado. Os meus movimentos eram lânguidos, os meus planos extremamente vagos. Fazia tenção de ir a Leatherhead, embora soubesse que as possibilidades de encontrar aí a minha mulher eram muito limitadas. Se não tivesse morrido, os meus primos e ela deviam ter fugido da vila; parecia-me que deveria encontrá-los ou saber onde estavam se me encaminhasse para o local para onde fugira o povo de Surrey. Sabia que queria encontrar a minha mulher, que o meu coração sofria por causa dela e do mundo, mas não tinha nenhuma ideia precisa de como poderia encontrá-la. Achava-me, igualmente, ciente da minha intensa solidão. Havia uma grande distância entre o local onde me encontrava, a coberto de uma mata, e as vizinhanças de Wimbledon Common.
Aquela sombria extensão era iluminada a espaços por tojo amarelo e giestas; não se via nenhuma planta vermelha. O sol nasceu enquanto eu errava, hesitante, e encheu tudo aquilo de luz e de vida. Num local pantanoso, entre as árvores, deparou-se-me uma multidão de sapos, buliçosos. Observei durante alguns momentos estes animais que me davam uma lição da sua firme determinação de viver. Em seguida, voltando-me de súbito, vi alguma coisa que rastejava entre um grupo de arbustos. Imobilizei-me, fixando aquilo. Dei alguns passos na sua direcção, e a coisa ergueu-se e surgiu um homem armado de um cutelo. Aproximei-me, lentamente. Silencioso e imóvel, o homem fitava-me. Quando cheguei mais perto, verifiquei que vestia roupas tão cobertas de pó e tão imundas como as minhas; parecia, na realidade, que tinha sido arrastado através de um cano de esgoto. Mais próximo, consegui distinguir o limo verde dos fossos misturado com o castanho-claro de cal suja e pedaços brilhantes de carvão. O cabelo era preto e caía-lhe sobre os olhos, e o seu rosto estava escuro, sujo e queimado pelo sol, de tal modo que não o reconheci nos primeiros momentos. Tinha um golpe na parte inferior do rosto.
- Pare! - gritou, quando me achava a uns dez metros de distância. Parei. Ele estava rouco.
- De onde vem? - perguntou.
Pensei, enquanto vigiava.
Venho de Mortlake - respondi. - Estive soterrado perto do fosso que os marcianos abriram com o cilindro. Consegui sair e fugir.
Não há comida para estes lados - disse ele. - Esta região pertence-me. Toda esta colina até ao rio, para trás de Clapham, e para cima até às proximidades do baldio. A comida só chega para um. Para que lados vai?
Respondi vagarosamente.
- Não sei - disse. - Estive soterrado nas ruínas de uma casa durante treze ou catorze dias. Não sei o que aconteceu entretanto.
Ele fitou-me, desconfiado, depois estremeceu e encarou-me com outra expressão.
- Não desejo de modo algum ficar por aqui - afirmei. - Acho que devo ir para Leatherhead, pois a minha mulher encontrava-se aí.

Ele gritou, apontando um dedo para mim.
- Você é o homem de Woking? Não foi morto em Weybridge?
Reconheci-o, no mesmo instante.
Você é o artilheiro que entrou no meu jardim!
Temos sorte! - exclamou. - Somos tipos com sorte! Imagine você! - Estendeu-me a mão, que apertei. - Eu fugi para um cano de esgoto. Mas não mataram ninguém. E, depois de se terem ido embora, fui para Walton. Mas... ainda não passaram dezasseis dias, e você já tem o cabelo acinzentado. - De súbito, olhou para trás. - É uma gralha - disse.
- Agora, até a sombra dos pássaros nos assusta. Estamos a descoberto. Vamos conversar para debaixo daqueles arbustos.
Tem visto os marcianos? - perguntei. - Desde que fugi...
Saíram de Londres - disse. - Devem ter encontrado um sítio melhor. De noite, em toda aquela região, Hampstead, o céu resplandece com as suas luzes. É como se fosse uma grande cidade; você até pode vê-los a mover-se, banhados por aquele clarão. De dia não se vêem. Mas, mais perto, já não os vejo... (contou pelos dedos) há cinco dias.
“Nessa altura, vi dois deles a caminho de Ham-mersmith, transportando qualquer coisa grande. E na noite de anteontem - fez uma pausa, e em seguida falou num tom solene -, as mesmas luzes, mas havia qualquer coisa no ar. Creio que construíram uma máquina voadora e estão a aprender a voar.
Desviei-me, de gatas, pois tínhamos chegado aos arbustos.
Voar!
Sim - disse ele -, voar.
Penetrei num pequeno caramanchão, e sentei-me.
- A sorte voltou-se contra a Humanidade - volvi.
- Se conseguirem fazer isso poderão correr o mundo facilmente de uma ponta à outra.
Ele assentiu.
- Fá-lo-ão. Mas... isso aliviará um pouco as coisas por aqui. E, além disso - fitou-me -, não está convencido de que já soou a última hora dos Homens? Eu estou. Estamos em baixo. Fomos derrotados.
Fitei-o. Por muito estranho que possa parecer, não pensara neste facto... um facto que se me tornou perfeitamente óbvio, mal ele falou. Nutrira uma vaga esperança, melhor, conservara os hábitos de pensamento que tivera durante toda a vida. Ele repetiu as suas palavras “Fomos derrotados.” Soavam com um tom de convicção absoluta.
- Acabou-se! - exclamou. - Eles perderam um - só um. Assentaram bem os pés e estropiaram a nação mais poderosa do mundo. Passaram por cima de nós. A morte daquele, em Weybridge, foi um acidente. E estes são apenas os pioneiros. Continuarão a chegar. Estas estrelas verdes... não vi nenhuma nestes últimos cinco ou seis dias, mas tenho a certeza de que caem todas as noites, algures... Não há nada a fazer. Estamos em baixo. Fomos derrotados.
Não respondi. Estava sentado e olhava em frente, tentando, em vão, descobrir um argumento que pudesse opor-lhe.
- Isto não é uma guerra - disse o artilheiro.
- Nunca foi uma guerra, do mesmo modo que não se poderia falar de guerra entre os homens e as for migas.
De súbito, lembrei-me da noite que tinha passado no laboratório.
- Depois do décimo tiro, não dispararam mais.
Pelo menos, até que chegou o primeiro cilindro - afirmei.
- Como sabe isso? - exclamou o artilheiro. Expliquei-lhe, e ele ficou pensativo durante alguns momentos. - Há qualquer coisa errada com essa arma disse. - Mas mesmo que haja? Arranjá-la-ão de novo. E ainda que isso leve tempo, em que é que isso altera o fim? É tal qual como entre homens e formigas. As formigas constroem as suas cidades, vivem as suas vidas, têm guerras, revoluções até que os homens querem afastá-las do seu caminho, e elas afastam-se do caminho. É o que nós somos agora precisamente formigas. Só que...
- Sim - disse eu.

- ...somos formigas comestíveis.
Fitámo-nos.
E o que é que eles vão fazer de nós? - perguntei.
É nisso que tenho estado a pensar - respondeu-, é no que tenho estado a pensar. Depois de sair de Weybridge fui para o sul - a pensar. Vi o que tinha acontecido. A maioria das pessoas esfalfavam-se a gritar, na maior excitação. Mas não sou um grande apreciador de guinchos. Estive uma ou duas vezes à beira da morte; não sou um soldado decorativo e, melhor ou pior, a morte é sempre a morte. Vi que todas as pessoas debandavam em direcção ao sul. Disse a mim mesmo: “a comida vai desaparecer daqui”, e voltei precisamente na direcção oposta. Fugia dos marcianos tal como os pardais fogem dos homens. Por todo o lado - fez um gesto largo - morrem de fome aos montes, fogem e atropelam-se uns aos outros.
Fitou-me e fez uma pausa, como que envergonhado.
- Não há dúvida de que a maioria das pessoas com dinheiro fugiu para França - disse. Pareceu hesitar, como que pedindo desculpa, e continuou:
- Aqui há comida por todo o lado. Coisas em conserva nas lojas, vinhos, licores, águas minerais; e os canos de água e os esgotos estão desimpedidos. Bem, ia dizer-lhe aquilo que tinha pensado: “Eis coisas inteligentes”, disse a mim mesmo, “e parece que nos querem comer. Em primeiro lugar, destruirão tudo o que temos - navios, máquinas, armas, cidades, toda a ordem e organização. Tudo isso vai desaparecer.
Se nós fôssemos do tamanho de formigas, poderíamos livrar-nos do aperto. Mas não somos. Tudo tem proporções demasiado grandes para que se venha a deter.
Esta é a grande certeza.” Hã?
Concordei.
- Pois é; cheguei a essa conclusão. Muito bem, continuemos; actualmente, apanham-nos, à medida que precisam de nós. Um marciano só tem de andar algumas milhas para alcançar uma multidão em debandada. E vi um deles, certo dia, arrancar casas aos bocados e esquadrinhar por entre os destroços. Mas não procederão sempre desta maneira. Mal tenham destruído todas as nossas armas e navios, despedaçado os nossos caminhos de ferro e acabado de fazer o que começaram, começarão a apanhar-nos sistematicamente, escolhendo os melhores e armazenando-nos em gaiolas e coisas do género. É o que vão fazer em breve. Meu Deus! Ainda não começaram a ocupar-se de nós. Está a compreender?
Não começaram ainda! -exclamei.
Não começaram. Tudo o que tem acontecido deve-se a não sabermos conservar a calma - importunando-os com a artilharia e parvoíces desse género, e por perdermos a cabeça, precipitando-nos em massa para onde não havia maior segurança do que no sítio donde fugíamos. Eles ainda não querem incomodarmos. Estão a fazer as suas coisas - a fazer tudo aquilo que não puderam trazer com eles, a preparar as coisas para o resto dos seus homens. É muito provável que tenha sido por essa razão que os cilindros deixaram de cair durante algum tempo, com receio de ferirem aqueles que se encontravam aqui. E, em lugar de vaguearmos como cegos, aos gritos, ou de procurarmos dinamite numa tentativa de os fazermos explodir, deveríamos adaptar-nos ao novo estado de coisas. É assim que eu penso. Não é nada daquilo que um homem deseja para a sua espécie, mas sim o que se pode fazer, atendendo às circunstâncias. E foi com base neste princípio que eu agi. Cidades, nações, civilizações, progresso - tudo desapareceu, já acabou. Fomos derrotados.
Mas se é assim, como é possível subsistir?
O artilheiro fitou-me durante alguns momentos.
- Não haverá mais nenhum daqueles abençoados concertos durante um milhão de anos, ou qualquer coisa desse género; não haverá nenhuma Academia
Real das Artes nem acepipes nos restaurantes. Se procura divertir-se, creio que esse tempo já passou.
Se tem maneiras cerimoniosas, se lhe repugna comer ervilhas com faca ou pronunciar mal as palavras, é melhor deitar fora essas maneiras... De futuro, não valem de nada.

Quer dizer...
Quer dizer que os homens como eu vão continuar a viver... por amor à espécie. Afirmo-lhe que estou firmemente decidido a viver. E, se não estou em erro, também você, em breve, mostrará o que existe dentro de si. Não vamos ser exterminados, nem tão-pouco apanhados, cevados e criados como um boi pachorrento. Diabo! Pense naqueles répteis castanhos!
Você não quer dizer que...
Quero. Vou continuar. Espezinhados. Pensei em tudo. Cheguei a esta conclusão. Nós, homens, fomos derrotados. Não temos conhecimentos bastantes. Temos de aprender antes que se nos depare uma oportunidade. E temos de viver e de conservar a nossa independência enquanto aprendemos. Tente compreender! É isto que temos de fazer.
Fitei-o, atónito, e senti-me encorajado pelo seu ar de firme determinação.
Meu Deus!-gritei. - Mas você é mesmo um homem! - E, num impulso, apertei-lhe a mão.
Eh! - exclamou ele, de olhos a luzir. - Sei raciocinar, hem?
Continue - disse eu.
Bem, os que quiserem escapar têm de andar depressa. Tome nota: nem todos fomos feitos para ser animais selvagens; e é o que vai acontecer. É por isso que tenho estado a observá-lo. Tenho as minhas dúvidas. Você é delgado. Não sabia quem você era, compreende? nem tão-pouco que tinha estado soterrado. Todos estes: a espécie de gente que vivia nestas casas, aqueles abençoados empregaditos que estavam habituados a viver à sua maneira - não teriam préstimo algum. Não têm a mínima centelha de espírito - nenhuns sonhos ambiciosos nem orgulho; e um homem destes - Meu Deus! - que é, além de um animal apavorado e cauteloso? Costumavam por assim dizer, escapulir-se para o trabalho - tenho visto centenas deles de pequeno-almoço na mão, a correr como selvagens lustrosos para apanharem o comboio de tarifa reduzida, com receio de serem despedidos se o perderem; se são empregados de comércio, receiam constantemente ter a maçada de compreender; escapam-se com medo de não chegar a tempo para o jantar; ficam em casa depois de jantar, com medo das ruas dos subúrbios, e dormem com as esposas não porque as desejem, mas porque tinham algum dinheiro que lhes daria um pouco de segurança na sua mesquinha e miserável fuga precipitada através do mundo. Seguro de vida e um pequeno investimento com medo de acidentes. E, nos domingos - medo do outro mundo. Como se o inferno tivesse sido feito para os coelhos. Pois bem, os indivíduos deste género vão considerar os marcianos como um dom do céu. Jaulas confortáveis, comida de engorda, criação cuidadosa, nenhumas preocupações. Depois de uma semana de fuga, como animais acossados, de estômagos vazios, aproximar-se-ão e deixar-se-ão apanhar de boa vontade. Depressa se aclimatarão. Perguntarão a si mesmos o que as pessoas faziam antes de os marcianos tomarem conta deles. E os madraços que passam a vida no bar, peralvilhos e cantores... imagino-os facilmente - disse ele, com uma espécie de sombrio deleite. - Perderão toda a réstia de sentimento e de religiosidade. Há centenas de coisas que vi com os meus próprios olhos e que só comecei a compreender claramente nestes últimos dias. Muitos vão tomar as coisas tal como elas são - gordos e estúpidos; e muitos outros deixar-se-ão imbuir de uma espécie de sensação de que tudo está errado, e de que têm de fazer qualquer coisa. Não importa que o aspecto actual das coisas leve muita gente a sentir que tem de fazer qualquer coisa; os fracos e aqueles que se deixam enfraquecer envolvidos numa teia de raciocínios complicados, seguem sempre uma espécie de religião não-te-rales, muito piedosa e superior, e submetem-se à perseguição e à vontade de Deus. É muito provável que você tenha assistido às mesmas coisas. energia soprada por uma rajada de cobardia e aproveitada às avessas. Essas gaiolas vão estar cheias de salmos, hinos e piedade. E os que não forem tão simples, trabalharão por um pouco de... como se diz?, erotismo. Fez uma pausa.

É muito provável que os marcianos transformem alguns deles em animais domésticos; que lhes ensinem a fazer habilidades - quem sabe?-, que se mostrem sentimentais para com o bicho-rapazinho que cresceu e tem de ser morto. E talvez treinem alguns para nos darem caça.
Não - exclamei-, é impossível! Nenhum ser humano...
De que serve continuarmos a mentir a nós próprios? - proferiu o artilheiro. - Há homens que o fariam de boa vontade. É insensato afirmar que não existem!
Rendi-me à sua convicção.
- Se vierem atrás de mim - disse ele. - Meu
Deus, se vierem atrás de mim! - Mergulhou numa sombria meditação.
Meditei durante alguns momentos acerca do que ele dissera. Não conseguia descortinar nenhum argumento que pudesse opor ao raciocínio deste homem. Nos dias anteriores à invasão, ninguém teria posto em dúvida a minha superioridade intelectual sobre ele - eu, um escritor declarado e reconhecido de temas filosóficos, e ele, um soldado vulgar; e, no entanto, ele já formulara uma situação que eu ainda mal tinha compreendido.
- Que tenciona fazer? - perguntei-lhe, daí a momentos.- Quais são os seus planos?
Hesitou.
- Bem o problema é este - disse -, que devemos fazer? Temos de inventar um tipo de vida que permita aos homens viver e procriar, e que seja suficientemente segura para cuidar das crianças. Sim - espere um momento, pois já lhe explico melhor o que acho que deve ser feito. A domesticação dos nossos semelhantes será igual à de qualquer animal;
dentro de algumas gerações, serão grandes, belos, saudáveis, estúpidos... lixo! Nós, os animais bravios, corremos o risco de nos tornarmos selvagens - degenerando numa espécie de ratazana grande e selvagem... Compreende, a vida que proponho é uma vida subterrânea. Tenho estado a pensar acerca dos esgotos. Como é natural, aqueles que não conhecem esgotos pensam em coisas horríveis; mas, debaixo desta cidade de Londres, há quilómetros e quilómetros - centenas de quilómetros -, e alguns dias de chuva, com Londres deserta, deixá-los-ão frescos e limpos. Os esgotos principais são bastante grandes e arejados para qualquer pessoa. Além disso, há caves, casernas, armazéns que podem ser ligados aos esgotos por meio de corredores. E os túneis dos caminhos de ferro e as passagens subterrâneas. Hem? Começa a compreender? Formaremos um bando - homens válidos, de cabeça no seu lugar. Não vamos escolher qualquer lixo que ande por aí. Os enfezados não nos interessam.
Nem eu, quer você dizer?
Bem, isto é conversar, não é verdade?
Não vale a pena discutirmos isso. Continue.
Aqueles que não estão dispostos a obedecer a ordens. Também precisamos de mulheres válidas e de cabeça no seu lugar - mães e professoras. Não queremos senhoras lânguidas, de olhos revirados. Não podemos ter entre nós nenhum fraco ou imbecil. A vida é novamente real e os inválidos são um estorvo e são nocivos: têm de morrer. Devem morrer. Devem estar dispostos a morrer. Afinal de contas, é uma espécie de deslealdade, viver e corromper a raça. E não podem ser felizes. Além disso, morrer não é assim tão terrível como se pensa: a cobardia é que dá esse aspecto à morte. Vamos reunir-nos em todos os sítios de que falei. O nosso distrito será Londres. E até poderemos dar uma olhadela e passear a descoberto quando os marcianos se forem embora. Talvez possamos jogar críquete. É assim que vamos salvar a raça. Hem? Será possível? Mas salvar a raça não é nada em si mesmo. Como digo, é apenas ser-se rato. O importante é salvar os nossos conhecimentos e aumentá-los. Nesse plano, entram homens como você. Há livros, há modelos. Temos de construir lugares seguros e amplos, subterrâneos, e reunir todos os livros que pudermos; não novelas e porcarias de poesia, mas ideias, livros de ciência. É aí que os homens como você são precisos. Temos de ir ao Museu Britânico e levar todos aqueles livros. Em particular, temos de conservar a nossa ciência - aprender mais. Temos de observar os marcianos. Alguns de nós têm de servir de espias, talvez eu mesmo, quando tudo estiver a funcionar; têm de deixar-se apanhar, quero eu dizer. E o importante é deixarmos os marcianos sozinhos. Nem sequer devemos espreitá-los às escondidas. Se passarem pelo nosso caminho, fugiremos. Devemos mostrar-lhes que não representamos nenhum perigo para eles. Sim, eu sei. Mas eles são coisas inteligentes e não devem querer perseguir-nos se tiverem o que querem, e pensarão que não somos mais do que vermes inofensivos.
O artilheiro fez uma pausa e pousou no meu braço uma mão bronzeada.
- No fim de contas talvez não precisemos de aprender muito. Imagine isto: quatro ou cinco das suas máquinas de combate, de súbito levantam voo - raios ardentes à esquerda e à direita e nem sequer um marciano no interior. Nenhum marciano, mas homens - homens que aprenderam a fazê-lo. Isso pode acontecer ainda no meu tempo - esses homens. Imagine que tem uma dessas coisas sedutoras, com os seus raios da morte de longo alcance, a funcionar! Imagine que os dominou! Que importância teria ficar feito em bocadinhos depois de uma proeza destas? Calculo como os marcianos abrirão os seus belos olhos! Não os vê, homem? Não os vê a fugir, a fugir, a bufar, a soprar e a chiar, procurando refúgio nos seus instrumentos metálicos? Zás, bangue, pum, zás! Tal como eles o manobram actualmente, o Raio da Morte sibila e, vejam... o homem recuperou o que lhe pertence.
Durante alguns momentos, o arrojo imaginativo do artilheiro e a segurança e a coragem de que dava mostras dominaram inteiramente os meus pensamentos. Acreditei, sem hesitar, nas suas profecias acerca do destino humano e na praticabilidade dos seus planos assombrosos. O leitor que me julgar crédulo e louco não se deve esquecer de que está a ler tranquilamente, concentrado, ao passo que eu, acocorado entre os arbustos, de ouvido atento ao mínimo rumor, estava dominado pelo medo.

Conversámos neste tom durante o resto da manhã e, mais tarde, abandonámos os arbustos e esquadrinhámos o céu à procura dos marcianos. Em seguida, dirigimo-nos precipitadamente para a casa de Putney Hill que lhe servia de covil. Era a carvoeira do sítio, e quando vi o resultado do seu trabalho durante uma semana - uma toca que mal tinha dez metros de comprimento, pela qual tencionava atingir o esgoto principal de Putney Hill - suspeitei pela primeira vez do abismo que existia entre os seus sonhos e as suas capacidades. Era um buraco que eu poderia escavar num único dia. Mas ainda acreditava nele o bastante para o ajudar desde manhã à tarde no trabalho de escavação. Utilizámos um carrinho de mão e atirávamos a terra que removíamos para o fogão de cozinha. Refrescámo-nos com uma lata de sopa de cabeça de vitela e vinho que se achavam na cozinha adjacente. É curioso notar que me tenha sentido aliviado da estranheza dolorosa do mundo ao executar este serviço monótono. Enquanto trabalhávamos, dei voltas na cabeça ao seu projecto e começaram a brotar objecções e dúvidas; mas trabalhei ali durante toda a manhã, de tal modo me bastava ter novamente um objectivo. Ao cabo de uma hora de trabalho, comecei a especular acerca da distância que nos separava da cloaca e das possibilidades que tínhamos de falhar. A minha preocupação imediata referia-se à necessidade de escavarmos este comprido túnel, quando se poderia chegar imediatamente ao cano de esgoto, bastando, para isso, descer por uma das aberturas, e voltar para casa pelo mesmo caminho. Também me parecia que a casa fora mal escolhida, pois requeria, inutilmente, um túnel muito comprido. E, no momento preciso em que começava a ponderar estes factos, o artilheiro interrompeu o seu trabalho e fitou-me.
- Estamos a trabalhar bem - disse. - Acho que chegou a altura de irmos ao telhado dar uma olhadela.
Preparava-me para o seguir. Após uma breve hesitação, ele pegou novamente na pá. Bruscamente, fui assaltado por uma ideia.
- Por que razão andava você a vaguear pelo baldio, em vez de estar aqui? - perguntei.

Fui tomar ar - respondeu. - Nessa altura, estava de regresso. É mais seguro de noite.
Mas, o trabalho?
Oh, não se pode estar sempre a trabalhar - respondeu ele, e, num curto instante, compreendi o verdadeiro carácter do homem. Hesitou durante alguns momentos, segurando a pá.
Temos de ir agora - disse -, pois se algum se aproximar daqui, ouve o ruído das pás e cai-nos em cima sem darmos por isso.
Eu já estava disposto a protestar.
Subimos ao telhado e observámos as imediações da casa, empoleirados numa escada de mão. Como não se via nenhum marciano, aventurámo-nos a subir para cima das telhas, e deslizámos para debaixo do resguardo do parapeito. Desta posição, a maior parte de Putney ficava escondida por um pequeno bosque, mas podíamos ver o rio, em baixo, uma massa espumosa de plantas vermelhas e as águas do curso inferior do Lambeth, transbordantes e vermelhas. As trepadeiras encarnadas envolviam as árvores nas vizinhanças do velho palácio e os seus ramos alongavam-se, delgados e ressequidos, com folhas encarquilhadas, por vezes em cachos. Era estranho como estas coisas dependiam inteiramente da água corrente para a sua propagação. Perto de nós, nenhum tinha ganho terreno; laburnos, cravos de maio, bolas de neve e arborvitae brotavam dos loureiros e das hortênsias, verdes e brilhantes, banhados pelo sol. Defronte de Kensington subia um fumo denso, que conjuntamente com um nevoeiro azulado ocultava as colinas do norte.
O artilheiro começou a falar-me acerca do destino das pessoas que permaneciam em Londres.
-Certa noite, na semana passada - disse -, alguns loucos arranjaram a luz eléctrica e toda a Regent Street e o Circus resplandeciam, formigando de ébrios, rubicundos e esfarrapados, homens e mulheres que dançaram e gritaram até de madrugada. Isto foi-me contado por um homem que se encontrava lá. E, quando nasceu o dia, viram que uma máquina de combate se achava perto do Laugham, observando-os. Só Deus sabe há quanto tempo estava ali. Encaminhou-se para eles e agarrou perto de uma centena, demasiado embriagados ou assustados para fugirem.
Que imagem grotesca de uma época que nenhuma história poderá alguma vez descrever completamente!
Em seguida, em resposta às minhas perguntas, voltou de novo aos seu planos grandiosos. Estava cada vez mais entusiasmado. Referiu-se com tanta eloquência à possibilidade de capturar uma máquina de combate que quase acreditei nele novamente. Mas, agora que começava a compreender alguma coisa do seu carácter, podia adivinhar a importância que ele dava a não fazer nada precipitadamente. E notei que desta vez não fazia questão em ser ele, pessoalmente, a capturar uma máquina de combate e a lutar no seu interior.
Passados alguns momentos descemos à carvoeira. Nenhum de nós parecia disposto a continuar a escavação e, quando sugeri que comêssemos, não me achava nada relutante a fazê-lo. Ele tornou-se de súbito muito generoso e, depois de comermos, saiu e regressou com alguns charutos excelentes. Acendemo-los e o optimismo jorrou. Ele estava disposto a encarar a minha chegada como uma ocasião especial.
Há algum champanhe na carvoeira - disse.
Poderemos escavar melhor com este Borgonha das margens do Tamisa - respondi.
Não - disse ele. - Você hoje é meu hóspede. Champanhe! Meu Deus! Temos uma tarefa bastante pesada à nossa frente! Vamos descansar e ganhar forças enquanto nos for possível. Olhe para estas mãos cheias de bolhas!
E, prosseguindo na sua ideia de um feriado, insistiu em jogarmos às cartas quando acabámos de comer. Ensinou-me a jogar, e dividimos Londres ao meio, cabendo-me o norte e a ele o sul. Por muito grotesco e louco que isto possa parecer ao leitor sóbrio, é absolutamente verdadeiro e, mais curioso ainda, achei este jogo e vários outros muito interessantes.
Que estranha é a mente do homem! Com a nossa espécie à beira da exterminação ou de uma degradação pavorosa, nenhum futuro feliz à nossa frente, antes a possibilidade de uma morte horrível, estávamos ali sentados, acompanhando a sorte dos cartões pintados, jogando o “trunfo” com um vivo prazer! Mais tarde, ele ensinou-me a jogar poker e eu ganhei-lhe dois jogos renhidos de xadrez. Quando escureceu, decidimos arriscar-nos e acendemos uma lâmpada.
Depois de uma série interminável de jogos, ceámos e o artilheiro acabou o champanhe. Continuámos a fumar charutos. Ele já não era o enérgico regenerador da sua espécie que eu encontrara de manhã. Continuava optimista, mas o seu optimismo era menos cinético, mais reflectido. Recordo-me que se referiu longa e monotonamente à minha saúde, mostran-do-se inquieto. Peguei num charuto e subi as escadas para ver as luzes de que ele tinha falado, que chamejavam com um verde tão vivo ao longo das colinas de Highgate.
A princípio, fitei estupidamente o vale de Londres. As colinas setentrionais estavam mergulhadas na escuridão; as luzes, perto de Kensington, espargiam clarões avermelhados e, de vez em quando, uma língua de chamas vermelho-laranja rompia e desvanecia-se no azulnescuro da noite. Todo o resto de Londres estava mergulhado na escuridão. Em seguida, mais perto, avistei uma luz estranha, um clarão fosforescente, pálido e violeta púrpura, estremecendo sob a brisa nocturna. Durante alguns momentos não consegui identificá-la, mas depois percebi que esta débil irradiação deveria provir da vegetação vermelha. Quando me apercebi deste facto, o meu sentido adormecido de espanto, o meu sentido de proporção das coisas despertou de novo. Relanceei o olhar para Marte, vermelho e claro, luzindo muito alto a ocidente e, depois, perscrutei longa e intensamente a escuridão que envolvia Hampstead e Highgate.
Deixei-me ficar durante muito tempo em cima do telhado, pensando nas grotescas mutações verificadas ao longo do dia. Recordei os estados mentais que atravessara desde a oração da meia-noite até à loucura do jogo de cartas. Sofri uma violenta revulsão de sentimentos. Lembro-me de que atirei fora o cigarro com um certo simbolismo pródigo. A loucura voltou a tomar posse de mim, com um exagero berrante. Sentia-me um traidor à minha mulher e à minha espécie; estava cheio de remorsos. Resolvi abandonar este estranho e indisciplinado sonhador de grandes coisas à sua bebida e glutonice, e partir para Londres. Julgava encontrar aí a melhor oportunidade de saber o que os marcianos e os meus camaradas estariam a fazer. Achava-me ainda em cima do telhado quando nasceu a tardia lua rosada.


VIII
LONDRES MORTA

Após me ter separado do artilheiro, desci a colina e, perto de High Street, atravessei a ponte que conduz a Fulham. Nesta região, a vegetação vermelha era luxuriante e quase obstruía a rodovia da ponte; no entanto, as folhas já estavam embranquecidas, devido à epidemia que começou a eliminá-las tão rapidamente.
Na esquina da viela que conduz à estação de Putney Bridge, vi um homem estendido no chão, tão enegrecido pela poeira negra que mais parecia um limpa-chaminés; embora se encontrasse vivo, estava irremediável e mudamente embriagado. Não consegui que dissesse nada senão pragas; além disso, desferia sobre a minha cabeça murros violentos. Creio que teria ficado ao pé dele, se não fosse a expressão brutal do seu rosto.
Passada a ponte, havia poeira negra ao longo da estrada, e tornava-se mais espessa em Fulham. As ruas estavam horrivelmente silenciosas. Encontrei comida - azeda, dura e bolorenta, mas suficientemente comestível - numa padaria. Mais próximo de Walham Green, não havia poeira nas ruas, e passei por uma fileira de casas brancas que ardiam; o crepitar das chamas ouvia-se nitidamente. Mais adiante, no caminho para Brompton, as ruas estavam de novo silenciosas.
Aqui, enfrentei mais uma vez a poeira negra; cobria as ruas e os cadáveres. Vi cerca de uma dezena de corpos ao longo de Fulham Road. Estavam mortos havia muitos dias, pelo que me afastei rapidamente deles. A poeira negra cobria-os por completo e diminuía-lhes os contornos. Um ou dois tinham sido semi-devorados pelos cães.
Os locais onde não havia poeira negra recordavam, curiosamente, um domingo na cidade, com as lojas e as casas fechadas, as cortinas descidas, o abandono e a tranquilidade. Alguns sítios tinham sido saqueados, mas tratava-se quase sempre de lojas de mantimentos e de vinho. A montra de uma joalharia estava quebrada, mas, aparentemente, o ladrão tinha sido incomodado, pois um certo número de correntes de ouro e um relógio achavam-se espalhados no pavimento. Não me dei ao trabalho de lhes tocar. Mais adiante, encontrava-se uma mulher esfarrapada e enrodilhada no degrau de uma porta; a mão que lhe pendia sobre o joelho estava ferida e sangrava sobre o desbotado vestido castanho, e uma garrafa de champanhe formava uma poça no pavimento. Parecia dormir, mas estava morta.
Quanto mais penetrava no interior de Londres, mais profundo se tornava o silêncio. Mas não era propriamente a tranquilidade da morte - era a calma do suspense, da expectativa. Em qualquer momento, a destruição que já tinha chamuscado a região a noroeste da metrópole e aniquilara Ealing e Kilburn, poderia arremessar-se sobre estas casas e deixá-las transformadas em ruínas fumegantes. Era uma cidade condenada e desamparada.
Em South Kensington, não havia mortos nem poeira negra nas ruas. Foi perto de South Kensington que ouvi, pela primeira vez, o bramido. Insinuou-se quase imperceptivelmente nos meus sentidos. Era uma alternância soluçante de duas notas: “Ula, ula, ula, ula”, que se repetiam incessantemente. Cresceu em volume quando atravessei as ruas em direcção ao norte, e as casas e as construções pareceram novamente amortecê-lo e silenciá-lo. Desceu, muito alto, ao longo de Exhibition Road. Parei, fitando na direcção de Kensington Gardens, pensando neste queixume estranho e longínquo. Era como se aquele imenso deserto de casas tivesse encontrado uma voz que exprimisse o seu intenso medo e solidão.
“Ula, ula, ula, ula”, choravam as sobre-humanas ondas de som, as formidáveis notas, varrendo a avenida larga e banhada pelo sol, entre os altos edifícios que a bordavam. Virei para norte, maravilhado, em direcção aos portões de ferro de Hyde Park. Tinha a vaga ideia de arrombar o Museu de História Natural e procurar orientar-me do topo das torres, com o fim de ver para além do parque. No entanto, decidi manter-me no solo, onde era possível esconder-me rapidamente, e, assim, subi Exhibition Road. Todas as grandes mansões que ladeavam a estrada estavam abandonadas e silenciosas e os meus passos ecoavam contra as fachadas das casas. Ao cimo, próximo do portão do parque, deparou-se-me uma estranha visão: um autocarro voltado, e o esqueleto, limpo de carne, de um cavalo. Isto deixou-me perplexo durante alguns momentos e, em seguida, segui pela ponte sobre a Ser-pentine. A voz crescia e crescia, longe, para lá das árvores, embora não conseguisse ver nada por cima das casas do lado norte do parque, salvo a neblina de fumo que se elevava a noroeste.
“Ula, ula, ula, ula”, gritava a voz, que provinha, ao que me parecia, da zona de Regent's Park. O grito desolador fazia-me pensar. O ânimo que me apoiava desfaleceu. O queixume apoderou-se de mim. Descobri que me achava intensamente fatigado, com os pés doridos, e de novo faminto e cheio de sede.
Já passava do meio-dia. Por que motivo deambulava, só nesta cidade da morte? Por que razão estava sozinho quando Londres inteira jazia em câmara-ardente na sua mortalha sombria? Senti-me intoleravelmente só. Perpassavam pela minha mente velhos amigos que esquecera havia anos. Pensei nos venenos das farmácias, nos licores armazenados pelos comerciantes de vinhos; recordei as duas criaturas encharcadas, desesperadas, que, pelo que sabia, compartilhavam comigo Londres.
Cheguei a Oxford Street atravessando o Marble Arch e também aqui havia poeira negra e vários corpos e um odor diabólico e ominoso que provinha dos respiradouros das caves de algumas casas. O calor provocado pela longa caminhada enchera-me de sede. Com infinitos cuidados, consegui arrombar uma cervejaria e arranjar comida e bebida. Depois de comer, senti-me cansado e entrei numa sala de estar situada atrás do bar e dormi numa poltrona preta, de crina de cavalo, que se achava ali.
Ao acordar, o lúgubre bramido vibrava novamente nos meus ouvidos, “Ula, ula, ula, ula”. Era já crepúsculo e, depois de ter achado no bar alguns biscoitos e um queijo - encontrara um guarda-comida, mas só continha vermes -, vagueei através dos silenciosos bairros residenciais em direcção a Baker Street - só me lembro de Portman Square - e, assim, desemboquei finalmente em Regent's Park. E, quando emergi no topo de Baker Street, vi ao longe, para lá das árvores, recortada na claridade do ocaso, a carcaça do gigantesco marciano do qual provinha este bramido. Eu não estava aterrorizado. Aproximei-me dele como se se tratasse de um facto natural. Fitei-o durante alguns momentos, mas não se moveu. Parecia estar a bramir, imóvel, por qualquer razão que eu não conseguia descobrir.
Tentei formular um plano de acção. Aquele som contínuo de “Ula, ula, ula, ula” confundia-me. Talvez estivesse demasiado cansado para ter medo. Na realidade, este grito monótono despertava-me mais curiosidade do que medo. Voltei para trás e entrei em Park Road, a fim de ladear o parque, prossegui sob o resguardo das varandas e, de Jahn's Wood, observei este marciano imóvel e queixoso. A uns duzentos metros de Baker Street, ouvi um coro de latidos e vi, em primeiro lugar, um cão com um pedaço de carne vermelha em putrefacção nas mandíbulas. O cão corria apressadamente na minha direcção, perseguido por um bando de animais famintos; descreveu um largo círculo para me evitar, como se receasse que eu pudesse mostrar-me um novo concorrente. Quando os latidos se desvaneceram na avenida silenciosa, voltou a destacar-se o som queixoso de “Ula, ula, ula, ula”.
Alcancei a manipuladora arruinada que se encontrava a meia distância da estação de St. John. De início, julguei que tinha desabado uma casa sobre a estrada. Só quando penetrei entre as ruínas vi, com um sobressalto, o Sansão mecânico por terra, com os tentáculos torcidos, despedaçados e emaranhados entre as ruínas que provocara. A parte dianteira estava despedaçada. Era como se tivesse embatido cegamente contra a casa e ficasse submergido nas ruínas que provocara. Parecia que isto se devia ao facto de uma manipuladora ter escapado ao controle do seu tripulante. Não pude escalar as ruínas para vê-lo, e já estava tão escuro que não se via o sangue que lhe manchava o assento nem a cartilagem que os cães tinham mordido.
Cada vez mais obcecado pelo que vira, caminhei apressadamente em direcção a Primrose Hill. Mais adiante, através de uma clareira nas árvores, vi outro marciano, tão imóvel como o primeiro, silencioso, no parque vizinho ao Jardim Zoológico. Um pouco além das ruínas, perto da manipuladora despedaçada, avistei de novo as plantas vermelhas e encontrei, no Regent's Canal, uma massa esponjosa de plantas vermelho-escuras.
Ao atravessar a ponte, deixou de ouvir-se, bruscamente, o som de “Ula, ula, ula, ula”. Fez-se um silêncio tão profundo como o que se segue ao ribombar de um trovão.
As sombrias casas das imediações erguiam-se, indistintas, altas e escuras; perto do parque, as árvores escureciam. À minha volta, por todo o lado, as plantas vermelhas brotavam das ruínas, ondulando. A noite, mãe do medo e do mistério, aproximava-se. No entanto aquela voz soara na solidão, a desolação fora suportável; graças a ela, Londres parecia viver ainda, e o sentido de vida que me cercava apoiara-me. Depois, uma súbita mutação e um silêncio profundo. Nada mais, além desta sombria calma.
À minha volta, Londres fitava-me fantasmagorica-mente. As janelas das casas brancas eram como as órbitas de crânios. A minha imaginação descobria milhares de inimigos silenciosos que se moviam em meu redor. O terror apoderou-se de mim, um horror da minha temeridade. Para a frente, a estrada tornava-se negra como azeviche, como se estivesse alcatroada, e divisei uma forma contorcida, estendida no caminho. Não tive coragem de continuar. Voltei pela estrada de St. John's Wood, e fugi precipitadamente desta quietude insuportável, na direcção de Kilburn. Escondi-me da noite e do silêncio até muito depois da meia-noite, num abrigo de cocheiros, em Harrow Road. Mas a minha coragem voltou antes da madrugada, e, quando as estrelas ainda luziam no céu, encaminhei-me novamente para Regent's Park. Perdi-me nas ruas e vi, ao fundo de uma comprida avenida, à meia-luz da madrugada, os contornos de Primrose Hill. No topo, subindo para as estrelas que se desvaneciam, erecto e imóvel, como os outros, achava-se um terceiro marciano.
Apoderou-se de mim uma louca determinação. Morreria e acabaria com tudo isto e, deste modo, poupar-me-ia a maçada de me suicidar. Continuei a avançar, temerariamente, na direcção deste titã e, depois, quando me aproximei e a luz se tornou mais intensa, vi uma multidão de corvos que voavam em círculo sobre a carcaça. Ao ver isto, sobressaltei-me, e comecei a correr ao longo da estrada.
Precipitei-me através das plantas vermelhas que obstruíam St. Edmund's Terrace (mergulhei até ao peito numa torrente de água que escorria dos canos na direcção de Albert Road) e emergi no gramado ao nascer do sol. Tinham sido erguidas, perto do topo da colina, grandes barreiras, tornando-a num vasto reduto - era a última e a mais larga praça construída pelos marcianos - e, por detrás destes montículos, subia uma delgada coluna de fumo que se desenhava no céu. No horizonte, surgiu um cão a correr impetuosamente, e desapareceu. O pensamento que se apoderara de mim tornou-se mais real, mais verosímil. Não sentia medo algum, apenas uma exaltação selvagem e trémula, quando escalei a colina em direcção ao monstro imóvel. No exterior da carcaça estavam suspensas tiras delgadas de castanho, que os pássaros famintos debicavam e dilaceravam.
Em seguida, escalei a plataforma de terra e detive-me no topo: na minha frente achava-se o interior do reduto. Era um espaço imenso, com máquinas gigantescas aqui e ali, vastos montões de material e estranhas construções. E, espalhados por ali, alguns nas suas máquinas de guerra, viradas, outros nas manipuladoras agora rígidas, e uma dúzia deles enfileirados, rígidos e silenciosos, estavam os marcianos - mortos! - aniquilados pela bactéria da doença e da putrefacção contra a qual os seus organismos não estavam preparados; aniquilados como o tinham sido as plantas vermelhas, depois de todos os engenhos humanos terem falhado, pelas coisas mais humildes que Deus, na sua sabedoria, colocou na Terra.
Porque fora isto que acontecera, como, certamente, eu e muitos homens teríamos previsto, se os nossos cérebros não estivessem cegos pelo terror e pela desgraça. Estes gérmens de doença tinham cobrado direitos à Humanidade desde o começo das coisas - tinham cobrado direitos aos nossos antepassados pré-humanos mal a vida brotou na Terra. Mas, graças a esta selecção natural da nossa espécie, desenvolveu-se em nós o poder de resistência; não sucumbimos a nenhuns gérmenes sem uma luta, e a muitos deles - os que causam a putrefacção da matéria morta, por exemplo - os nossos corpos vivos são totalmente imunes. Mas não existem bactérias em Marte e, mal estes invasores chegaram, mal comeram e beberam, os nossos aliados microscópicos começaram a trabalhar para a sua destruição. Quando eu os observara já estavam irremediavelmente condenados; embora andassem de um lado para o outro, estavam a morrer e a apodrecer. Isto era inevitável. Pelo preço de um milhão de mortos, o homem comprou o seu direito de viver na Terra, e este pertence-lhe contra todos os forasteiros; continuaria a pertencer-lhe ainda que os marcianos fossem dez vezes maiores. Pois os homens não vivem nem morrem em vão.
Achavam-se espalhados por aqui e por ali cerca de cinquenta, naquela grande fortaleza que tinham construído, vencidos por uma morte que lhes deve ter parecido tão incompreensível como qualquer outra teria sido. Também para mim, nesse momento, esta morte era incompreensível. Tudo quanto sabia era que estas coisas, outrora vivas e tão terríveis para os homens, estavam mortas. Durante alguns momentos, julguei que se repetira a destruição de Senaque-rib, que Deus se tinha arrependido, que o Anjo da Morte os aniquilara durante a noite.
Fitava o fosso, e no meu coração repicavam sinos alegremente, tal como se o sol nascente incendiasse o mundo que me cercava com os seus raios. O fosso ainda se encontrava mergulhado na escuridão; os enormes engenhos, tão grandes e maravilhosos na sua potência e complexidade, tão cósmicos nas suas formas tortuosas, erguiam-se, fantástica, vaga e irrealmente das sombras para a luz. Uma multidão de cães (ouvia-os) lutava pelos corpos que jaziam, sombrios, nas profundezas do fosso, muito longe de mim. Na orla mais afastada do fosso, achatada, imensa e estranha, jazia a grande máquina de voar que eles tinham experimentado na nossa atmosfera densa quando o enfraquecimento e a morte os detiveram. A morte atingira-os no momento próprio. Ao ouvir um crocitar por cima da minha cabeça, fitei a imensa máquina de combate, que nunca mais lutaria, as esfarrapadas tiras vermelhas de carne que escorriam dos assentos virados, no topo de Primrose Hill.
Voltei-me e observei o fundo do declive da colina onde, aureolados agora por aves, se encontravam os outros dois marcianos que vira de noite, tal como a morte os encontrara. Um deles morrera gritando, porventura, para os seus companheiros; talvez fosse o último a morrer, e a sua voz atroara continuamente até que a força do seu maquinismo se esgotou. Agora resplandeciam, inofensivas torres trípodes de metal brilhante, banhadas pelo sol nascente.
Em redor do fosso, salva como que milagrosamente da destruição eterna, estendia-se a grande Mãe das Cidades. Aqueles que apenas viram Londres envolta nas suas sombrias vestes de fumo mal podem imaginar a claridade límpida e a beleza do número atordoante de casas silenciosas.
A leste, por cima das ruínas enegrecidas de Albert Terrace e do pináculo estilhaçado da igreja, o sol brilhava, ofuscante, num céu límpido, e aqui e ali, algumas facetas na grande multidão de telhados capturavam a luz e resplandeciam com uma intensidade branca.
A norte, achavam-se Kilburn e Hampstead, azuis e formigantes de casas; a oeste, a grande cidade estava escurecida e, para sul, além dos marcianos, desenhavam-se sob o sol nascente as ondulações verdes de Regent's Park, o Hotel de Laugham, a cúpula do Albert Hall, o Imperial Institute e as gigantescas mansões de Brompton Road, nítidas e diminuídas pela distância. As ruínas de Westminster erguiam-se, nebulosas, mais adiante. Longe, azuis, viam-se as colinas de Surrey e as torres do Crystal Palace brilhavam como duas barras de prata. A cúpula de St. Paul erguia-se, negra, sob o sol; vi pela primeira vez que estava machucada por uma vasta cavidade que se escancarava no sector oriental.
E, ao olhar para esta vasta extensão de casas, fábricas e igrejas, silenciosas e abandonadas; ao pensar nas numerosas esperanças e esforços, nas inumeráveis hostes de vidas que tinham construído este recife humano, e na rápida e implacável destruição que se abatera sobre tudo; ao compreender que a sombra desaparecera e que os homens poderiam viver de novo nas ruas, e que esta minha querida e imensa cidade morta voltaria, poderosa, à vida, senti uma vaga de emoção e estive quase a debulhar-me em lágrimas.
O tormento passara. Ainda nesse dia começaria o restabelecimento. Os sobreviventes do povo, dispersos pelo país - sem chefes, sem lei, sem comida, como carneiros sem pastor -, os milhões que tinham fugido pelo mar, começariam a regressar; o pulso de vida seria cada vez mais forte; bateria novamente nas ruas vazias e fluiria através das praças abandonadas. Por muito grande que tivesse sido a destruição, a mão do destruidor fora detida. Todas as ruínas descarnadas, os esqueletos enegrecidos das casas que se erguiam tão sombriamente sobre o verde da colina banhada pelo sol, ecoariam com as marteladas dos restauradores e ressoariam com as pancadas dos trolhas. Quando penso que estendi as mãos ao céu e comecei a agradecer a Deus! Daqui a um ano - pensei - daqui a um ano...
Com uma força arrebatadora, pensei em mim, na minha mulher, e na vida antiga de esperança e ternura que cessara para sempre.


IX
RESTOS DO NAUFRÁGIO

E chegou agora o momento da parte mais estranha da minha história. No entanto, talvez não seja inteiramente estranha. Recordo, nítida, fria e vivamente, tudo quanto fiz naquele dia até me achar no topo de Primrose Hill, lamentando-me e louvando a Deus. Esqueci o que se passou em seguida.
Não me lembro de nada dos três dias seguintes. Soube depois que não fui a primeira pessoa que descobriu que os marcianos tinham morrido - bem longe disso! -, pois vários vagabundos como eu já tinham conhecimento desse facto na noite anterior. Um homem - o primeiro - fora a St. Martin's-le-Grand e, enquanto eu me abrigava na barraca do abrigo dos cocheiros, achou meios de telegrafar para Paris. Desta cidade, as alegres notícias tinham corrido mundo; um milhar de cidades deprimidas por horríveis temores cintilaram, de súbito, de iluminações frenéticas; souberam em Dublim, Edimburgo, Manchester, Birmingham, na altura em que me encontrava à beira do fosso. Imediatamente, homens pulando de alegria, conforme me disseram, clamando e suspendendo o trabalho para trocar apertos de mãos e dar vivas, começaram a encher alguns comboios, mesmo tão perto como Crewe, para seguirem para Londres. Os sinos das igrejas, silenciosos durante uma quinzena, souberam de súbito as notícias e começaram a repicar por toda a Inglaterra. Homens em bicicletas, magros, desgrenhados, voaram ao longo de todos os caminhos, clamando a inesperada libertação, gritando as notícias às figuras do desespero, sombrias e pasmadas. E quanto à comida! Através do Canal, através do mar irlandês, através do Atlântico, vogavam velozmente os socorros, trigo, pão e carne. Naqueles dias, parecia que toda a navegação do mundo rumava para Londres. Mas não me lembro de nada disto. Vagueava - um homem enlouquecido. Dei por mim numa casa de gente amável que me encontrara no terceiro dia, errando, chorando e delirando através das ruas de St. John's Wood. Disseram que estava a entoar uma cantilena qualquer acerca de “O último homem vivo! Hurrah! O último homem vivo!”. Embora estivessem muito preocupados com os seus próprios problemas, estas pessoas, cujos nomes não conheço apesar de desejar ardentemente expressar-lhes a minha gratidão, recolheram-me e protegeram-me de mim próprio. Aparentemente, tinham sabido por mim mesmo, durante os dias em que estive inconsciente, alguma coisa da minha história.
Muito docemente, quando recuperei a consciência, revelaram-me o que sabiam acerca do destino de Leatherhead. Dois dias mais tarde, soube que tinha sido destruída com todas as suas vidas por um marciano. Ao que parecia, aniquilara-a sem qualquer provocação, assim como um rapaz esmaga uma formiga numa mera demonstração de poder.
Eu era um homem solitário e eles foram muito amáveis para mim. Permaneci em casa deles durante os quatro dias que se seguiram à minha recuperação. Sentia entretanto uma ânsia vaga, cada vez maior, de ver mais uma vez o que restava da pequena vila que fora tão feliz e radiante no meu passado. Era um simples desejo doentio de me deleitar com a minha desgraça. Eles dissuadiram-me. Fizeram tudo quanto puderam para me afastar deste desejo mórbido. Mas, por fim, não pude resistir mais ao impulso e separei-me destes amigos de quatro dias, devo confessar, com lágrimas nos olhos. Saí novamente para as ruas que tinham estado recentemente tão escuras, tão estranhas e tão desertas.

Já formigavam de gente que regressava; havia mesmo, em alguns locais, lojas abertas e vi uma fonte da qual escorria água potável.
Lembro-me de como o dia me parecia zombeteiramente luminoso à medida que regressava, na minha peregrinação melancólica, à pequena casa de Woking; de como as ruas formigavam de gente e de como era animada a vida que transparecia nos movimentos em redor. Havia tantas pessoas por todo o lado, ocupadas em mil tarefas, que parecia inacreditável que tivesse morrido uma grande parte da população. Mas, depois, notei a cor amarelada da pele das pessoas com quem me cruzava, os cabelos desgrenhados dos homens, os seus olhos inchados e brilhantes e que um homem em cada dois envergava ainda os seus farrapos poeirentos. Todos os rostos mostravam uma de duas expressões - um entusiasmo e uma viva energia, ou uma resolução rígida. Se não fosse a expressão dos seus rostos, Londres pareceria uma cidade de mendigos. Nas sacristias distribuía-se, indiscriminadamente, pão enviado pelo Governo francês. Viam-se, lúgubres, as costelas de alguns cavalos. Polícias especiais, de rosto encovado, com distintivos brancos, estavam postados nas esquinas de todas as ruas. Vi poucos dos danos provocados pelos marcianos até chegar a Wellington Street, onde as plantas vermelhas brotavam dos suportes de Waterloo Bridge.
Também avistei, no ângulo da ponte, um dos contrastes vulgares daquela época grotesca - uma folha de papel que tremulava ao vento, numa moita de plantas vermelhas, perfurada por um pau que a mantinha presa. Era o placar do primeiro jornal que se voltava a publicar - o Daily Mail. Comprei um exemplar com um xelim enegrecido que encontrei nos bolsos. A maior parte estava em branco, mas o compositor solitário que o fizera divertira-se a fazer um esquema grotesco de um anúncio impresso a estereotipo, na última página. O texto que imprimira era sentimental: as organizações de notícias ainda não tinham conseguido restabelecer-se. Não li nada de novo, com excepção de que o exame dos mecanismos marcianos iniciado na semana anterior já chegara a resultados que se tinham revelado surpreendentes. Entre outras coisas, o artigo assegurava aquilo em que não acreditei na altura, que o “segredo de voo” fora descoberto. Em Waterloo havia comboios que transportavam gratuitamente as pessoas para suas casas. Os primeiros momentos de agitação já tinham passado. Havia poucas pessoas no comboio e eu não tinha vontade de conversar. Arranjei um compartimento só para mim e sentei-me de braços cruzados, fitando com tristeza a devastação banhada pelo sol que perpassava através das janelas. Precisamente no término, o comboio rolava aos solavancos sobre carris provisórios e de ambos os lados do caminho de ferro as casas eram ruínas enegrecidas. Vista de Clapham Junction, Londres parecia suja de poeira do Fumo Negro, apesar de dois dias de temporal e chuvadas e, em Clapham Junction, a linha também fora destruída; centenas de desempregados e lojistas trabalhavam lado a lado com os trabalhadores habituais, e continuámos depois de os carris terem sido recolocados apressadamente.
Daí em diante, a região mostrava-se sombria e estranha; em particular, Wimbledon sofrera bastante. Walton, graças aos seus pinhais, que tinham escapado às chamas, parecia o local menos atingido ao longo da linha. Wandle, Mole, todas as pequenas correntes de água eram um amontoado de plantas vermelhas com uma aparência entre a de carne de talho e a de repolhos em conserva. No entanto, os pinhais de Surrey estavam demasiado ressequidos devido às grinaldas das trepadeiras vermelhas. Além de Wimbledon, em algumas hortas, viam-se os montões de terra que rodeavam o sexto cilindro. Achava-se aí um certo número de pessoas e alguns sapadores atarefavam-se no local. Por oima, a Union Jack tremulava, oscilando alegremente sob a brisa matinal. Todas as hortas tinham um tom carmesim provocado pelas plantas vermelhas, uma vasta extensão de cor clara entremeada por sombras púrpura, que faziam arder a vista. Era um alívio infinito abandonar o cinzento chamuscado e o vermelho-escuro do primeiro plano e mergulhar a vista na suavidade azul e verde das colinas a leste.

Como, na gare de Woking, a linha do lado de Londres estava em reparação, desci na gare de Byfleet e tomei a estrada para Maybury. Passei perto do local onde eu e o artilheiro tínhamos conversado com os hussardos e também pelo sítio onde vira o marciano no meio do temporal. Aqui, movido pela curiosidade, fiz um desvio e encontrei, entre uma massa emaranhada de ramagens vermelhas, o cabriole empenado e partido; os ossos embranquecidos do cavalo estavam espalhados e roídos. Fitei durante um longo momento estes vestígios.
Em seguida, atravessei o pinhal, onde a vegetação vermelha me chegava, por vezes, até ao pescoço e fui informado de que o proprietário do Spotted Dog já fora sepultado; assim, tomei novamente o caminho para minha casa, passando pelo College Arms. Um homem, parado junto da porta aberta de uma casa de campo, saudou-me pelo meu nome quando passei.
Fitei a minha casa com um breve relâmpago de esperança que se desvaneceu imediatamente; a porta tinha sido forçada; estava aberta e escancarava-se lentamente à medida que me aproximava. Fechei-a novamente, com ruído. As cortinas do meu escritório tremulavam no exterior da janela, aberta, da qual eu e o artilheiro observáramos o romper do dia. Ninguém a fechara desde então. Os arbustos despedaçados achavam-se precisamente tal como os deixara havia cerca de quatro semanas. Cambaleei no hall, e a casa parecia vazia. A passadeira estava amarrotada e desbotada no sítio onde me agachara, molhado até aos ossos pelo temporal, na noite da catástrofe. Viam-se ainda as pegadas enlameadas que provocara ao subir as escadas.
Encaminhei-me para o escritório. Em cima da secretária, sob o pisa-papéis de selenite, achava-se ainda a folha que deixara na tarde da abertura do cilindro. Durante alguns instantes, reli as minhas teses abandonadas. Tratava-se de um ensaio acerca da provável evolução das Ideias Morais com o desenvolvimento do processo de civilização; a última frase era a abertura de uma profecia: “Dentro de cerca de duas centenas de anos”, escrevera, “é provável que...”


A frase terminava abruptamente. Recordei a minha incapacidade de me concentrar naquela manhã, mal passara um mês, e como tinha interrompido o trabalho com o fim de comprar ao ardina o Daily Chro-nicle. Lembrava-me de como descera ao portão do jardim quando ele chegou, e de ouvir a sua história bizarra acerca de “Homens vindos de Marte”.
Desci as escadas e entrei na sala de jantar onde encontrei carne de carneiro e pão, ambos estragados havia muito tempo, e uma garrafa de cerveja, precisamente tal como eu e o artilheiro a tínhamos abandonado. O meu lar estava deserto. Apercebi-me de como era louca a débil esperança que acalentara durante tanto tempo. E, nesse momento, aconteceu uma coisa estranha.
- Não vale a pena - dizia uma voz. - A casa está abandonada. Ninguém veio aqui durante os últimos dez dias. Não fique aqui a atormentar-se. Só você escapou.
Eu sentia-me alarmado. Teria proferido em voz alta os meus próprios pensamentos? Voltei-me. Atrás de mim, as persianas estavam abertas. Dei um passo na sua direcção, e olhei para fora.
E ali, tão maravilhados e receosos como eu, encontravam-se o meu primo e a minha mulher - a minha mulher, pálida e de rosto enxuto. Soltou um débil grito.
- Vim - disse ela. - Eu sabia... sabia... - Levou a mão à garganta e cambaleou. Dei um passo em frente e apertei-a nos meus braços.





EPÍLOGO

Só posso lamentar, agora que estou a chegar ao termo da minha narrativa, ter tão poucas possibilidades de contribuir para a discussão das numerosas questões em debate que ainda não estão esclarecidas. Num dado aspecto, devo, certamente, ser alvo de críticas. O meu ramo de conhecimento é a filosofia especulativa. Os meus conhecimentos acerca da fisiologia comparada resumem-se a um ou dois livros, mas parece-me que as sugestões de Carver quanto à causa da rápida morte dos marcianos são tão prováveis que podem ser encaradas quase como uma conclusão provada. Admiti-as no corpo da minha narração.
De qualquer modo, em todos os corpos dos marcianos que foram examinados depois da guerra não foram encontradas nenhumas bactérias além das que já são conhecidas nas espécies terrestres. O facto de não terem enterrado nenhum dos seus mortos e a carnificina despreocupada que perpetraram também apontam para a sua completa ignorância do processo de putrefacção. Mas, embora pareça tão provável, isto não está, de modo algum, provado.
A composição do Fumo Negro, que os marcianos empregaram com um efeito tão mortal, também não é conhecida, e o gerador dos raios ardentes continua a ser um enigma. Os terríveis desastres que se verificaram nos laboratórios de Ealing e South Kensing-ton desencorajaram os analistas de novas investigações sobre o assunto. A análise espectral da poeira negra indica,
indiscutivelmente, a presença de um elemento desconhecido com três traços brilhantes sobre um fundo verde; é possível que este se combine com argónio, formando um composto que actua imediatamente com efeitos mortais sobre alguns constituintes do sangue. Mas estas especulações não provadas devem despertar pouco interesse ao leitor comum a quem se dedica este livro. Nenhuma das escórias castanhas que desceram o Tamisa depois da destruição de Shepperton foi examinada na altura, e não apareceu mais nenhuma.
Já descrevi os resultados do exame anatómico dos marcianos, tão perfeito quanto foi possível realizar depois do que os cães lhes fizeram. No entanto, todos eles apresentam analogias com o magnífico e quase completo exemplar conservado em álcool, que se encontra no Museu de História Natural, e com os esboços inumeráveis que se fizeram deles. Para além disto, o interesse pela sua fisiologia e estrutura é puramente científico.
Uma questão de interesse mais grave e universal é a possibilidade de outro ataque dos marcianos. Acho que não se está a dar a devida atenção a este aspecto do caso. Actualmente, o planeta Marte está em conjunção, mas prevejo, pela minha parte, uma renovação da sua aventura em todas as oposições. De qualquer modo, devíamos estar preparados. Parece-me que seria possível definir a posição da arma que dispara os cilindros, manter em vigilância contínua essa parte do planeta e prever o início do próximo ataque.
Em qualquer caso, o cilindro poderia ser destruído com dinamite ou artilharia antes que estivesse suficientemente arrefecido para permitir a saída dos marcianos, ou poderiam ser massacrados mal se desenrascasse um parafuso. Creio que perderam uma vantagem considerável ao falhar a sua primeira surpresa. Provavelmente, encaram o problema da mesma maneira.
Lessing expôs razões excelentes para supor que os marcianos tenham conseguido, na verdade, efectuar um desembarque no planeta Vénus. Há sete meses, Vénus e Marte encontravam-se em alinhamento com o Sol; isto é, do ponto de vista de um observador de Vénus, Marte estava em oposição. Imediatamente a seguir, uma luminosidade peculiar e marcas sinuosas apareceram na parte não iluminada do planeta e, quase que ao mesmo tempo, uma débil mancha escura de características igualmente sinuosas foi detectada numa fotografia do disco marciano. É preciso observar os esboços destes fenómenos para apreciar inteiramente a notável semelhança das suas características.
De qualquer modo, esperemos ou não outra invasão, os nossos pontos de vista acerca do futuro da Humanidade devem sofrer uma grande modificação em consequência destes acontecimentos. Sabemos agora que não podemos olhar este planeta como uma fortaleza e um lugar onde o Homem poderá residir em segurança; nunca podemos prever o bem ou o mal que pode chegar de súbito até nós, vindo do espaço; é possível que nos mais latos desígnios do universo esta invasão dos marcianos se venha a mostrar benéfica para os homens: roubou-nos aquela serena confiança no futuro que é a mais fértil fonte de decadência; os dons que ofertou à ciência humana são enormes e contribuiu grandemente para promover a concepção da comunidade humana. É possível que os marcianos, através da imensidade do espaço, tenham observado o destino destes seus pioneiros, tenham aprendido a sua lição e que tenham achado no planeta Vénus uma colónia mais segura. No entanto, seja como for, não haverá decerto, durante muitos anos, afrouxamento do exame ansioso do disco marciano e aquelas setas ígneas do céu, as estrelas cadentes, trarão com elas, ao caírem, um temor inevitável a todos os filhos do Homem.
O alargamento das concepções do homem que daqui resultou não podia ser maior. Antes da queda do cilindro, havia uma convicção generalizada de que nas profundezas do espaço não existia vida, salvo na superfície insignificante da nossa diminuta esfera. Agora vemos mais longe. Se os marcianos podem alcançar Vénus, não há razões para supor que os homens o não possam fazer e, quando o lento arrefecimento do Sol tornar a Terra inabitável, como deve acontecer por fim, é provável que a corrente de vida que aqui brotou transborde e capture o nosso planeta irmão nas suas redes.
É confusa e maravilhosa a visão que imaginei da vida a expandir-se lentamente deste pequeno leito do sistema solar, através da vastidão inanimada do espaço sideral. Mas é um sonho longínquo. Por outro lado, pode ser que a destruição dos marcianos seja apenas uma trégua. O futuro destina-se a eles, talvez, e não a nós.
Devo confessar que o perigo e a tensão daquela época deixaram na minha mente uma duradoura sensação de dúvida e de insegurança. Estou sentado no meu escritório, a escrever à luz do candeeiro e, de súbito, vejo novamente, lá em baixo, o vale a arder em chamas bruxuleantes, e sinto atrás de rnim e à minha volta a casa vazia e abandonada. Saio para a Byfleet Road e os veículos passam por mim, o rapaz de um talho numa carroça, um cabriole cheio de visitantes, um operário numa bicicleta, crianças a caminho da escola e, bruscamente, tudo se torna vago e irreal e eu corro de novo, com o artilheiro, através do silêncio abafado de uma atmosfera tempestuosa. De noite, vejo a poeira negra escurecendo as ruas silenciosas, e os corpos contorcidos, amortalhados por aquela coberta, erguem-se diante de mim rasgados e mordidos pelos cães. Por fim algaraviam e enfurecem-se, mais lívidos, mais medonhos, loucas distorções de homens, e eu acordo, gelado e triste na escuridão da noite.
Vou para Londres e vejo as multidões atarefadas em Fleet Street e no Strand, e imagino que são apenas os fantasmas do passado, assombrando as ruas outrora silenciosas e abandonadas, andando de aqui para ali, fantasmas numa cidade morta, o arremedo de vida num corpo galvanizado. E também é estranho deter-me em Primrose Hill, como o fiz no dia anterior àquele em que escrevi este último capítulo, a ver o grande número de casas, escuras e azuladas, através do fumo e do nevoeiro, desvanecendo-se finalmente num vago céu mais baixo, ver as pessoas andar de um lado para o outro entre os leitos de flores da colina, ver os excursionistas perto de uma máquina marciana que ainda se encontra ali, ouvir a algazarra das crianças a brincar e recordar o tempo em que vi isto tudo brilhante e distinto, opressivo e silencioso, na alvorada daquele último grande dia...
E o mais estranho de tudo é apertar de novo a mão da minha mulher e pensar que a julguei, como ela me julgou, entre os mortos.
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