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PUBLICAÇÕES MAIS RECENTES

29.8.09

LONGA ESPERA - CELLY BORGES

Escritora paranaense Celly Borges retorna á Câmara com uma história sobrenatural. Um crime hediondo; um poder maligno gerado pela violencia dos fatos. Boa leitura!



LONGA ESPERA

Por Celly Borges

Eu estava parada em frente aos portões daquela casa antiga. Olhei para dentro e soube que não deveria estar ali mas já era tarde demais no momento em que entendi isso. Entretanto os portões não se abriram repentinamente como eu mesma acreditei que fariam. Percebi que uma luz surgia às minhas costas.

Ao me virar, notei que vinha a altura de meus joelhos uma lamparina bastante luminosa, mas o que me deteve e atemorizou, foi quem a carregava, uma criança deformada. Era este pequeno ser um espírito.

Minha mente clamava para que eu corresse dali, mas meus pés se enterravam na lama e no mato que crescia demasiado.

A criança se aproximou de mim e me olhou com olhos tristes e repletos de desespero.

E eu não conseguia me mexer.

Maldita hora que eu prestara atenção a um sonho. Sonho este que eu tivera noite passada em que alguém me pedia para que eu fosse àquele lugar nunca visto antes. Ao acordar, na mesa, ao lado de minha cama, estava um papel com o endereço recebido no sonho. A ausência de qualquer objeto para eu ter anotado me incomodou. Porém, mesmo se não tivesse escrito, lembraria. Acordei com as palavras exatas, todas em minha mente, claras.

A curiosidade era tão intensa, eu própria não entendia e ali estava eu, na frente daquele ser, sem conseguir recuar, pois minhas pernas impediam qualquer movimento.

A assombração estendeu sua pequenina mão e percebi um objeto, uma única chave. Com um movimento, insistiu para que eu pegasse. Mesmo receosa, aceitei e a criança virou em direção ao portão para assim, iluminá-lo e utilizando a chave, abri.

Ainda com auxilio do pequeno ser, o qual eu já sentia carinho, apesar da situação inusitada, seguimos e ao longo do caminho, vi um pouco longe, algo como lápides, mas não pude analisar com atenção, afinal, a luz já seguia longe e eu não queria ficar no escuro naquele lugar estranho, que deveria esconder muito mais do que o fantasma de uma criança.

A porta da frente estava entreaberta, a criança já subia as escadas, segurando a lamparina, corri para alcançá-la, ela se virou e levou o dedo à boca em pedido de silêncio. Então fui mais devagar.

O lugar era escuro e assustador, só iluminado fracamente pela luz da lua que entrava pelas janelas. Seguimos pelo corredor, do último quarto podia-se, por debaixo da porta, ver que a luz estava acesa.

Não se o que me acontecia, não conseguia parar ou retornar. Já não era eu quem guiava meus pés. Algo me fazia avançar cada vez mais. Senti quando as lágrimas começaram a escorrer por meu rosto todo. Sem sucesso, eu tentava agarrar os objetos próximos. Minhas pernas estavam descontroladas. Ouvi movimentos vindos do quarto e a porta foi aberta a fim de saber o que acontecia do lado de fora.

E eu o vi. Era meu marido. O marido que me abandonara logo depois que meu filho completara dois anos e o levara com ele. Senti um terrível ódio e percebi que ainda segurava um dos objetos que agarrara, na intenção de não chegar até ali, um vaso de louça, e sem saber como comecei a golpear a cabeça de meu marido, com força descomunal.

Havia um espelho em minha frente, na parede, denunciava meus olhos vermelhos como o sangue e meu rosto deformado pelo ódio e pela fome.

Quando consegui voltar a mim, meu semblante já se mostrava normal, mas eu segurava um pedaço do vaso e vi aquele homem totalmente desfigurado caído em minha frente, morto, sem sangue. Como em meu sonho.

Olhei em volta a procura da criança, no entanto, tinha desaparecido com a lamparina. Desci as escadas, sem saber por que, mas com uma ideia em mente.

Lá fora, no meio do quintal, a lamparina caída ainda brilhava ao lado das lápides, usei a fim de iluminar o nome que estava em uma delas e lá estava o nome de meu filho.

Tudo aconteceu como em meu sonho maldito que avisou sobre meu marido ter matado meu filho com golpes de um vaso que estava no corredor daquela casa. Incrivelmente eu sabia que ele não era o culpado. O único que deveria levar a culpa pelas mortes de todas aquelas pessoas enterradas no quintal, era algo que morava naquele lugar.

A mesma coisa que fora me buscar em meu sonho e agora me prenderia ali com a certeza, minha e dela, de que eu seria a próxima a alimentar com meu sangue aquele monstro invisível. Era só uma questão de tempo, até que surgisse a próxima vítima e me enterrasse ao lado de meu marido e meu filho.

Agora eu só podia esperar.

28.8.09

SURPRESA - GABRIEL HEINRICH


Grande amigo Gabriel Heinrich, escritor de minicontos, estréia na Câmara com aquilo que ele mesmo define como um "textículo de terror". Boa leitura!



SURPRESA

Gabriel Heinrich




Ó, Ambrósius, porque bates à minha porta nessa hora da madrugada?
E que modos são estes, desarticulados, que encerras nestas vestes imundas?
O que é isso que trazes escondido em uma das mãos?
Te digo que esta coisa pontiaguda reflete a luz do poste lá fora!
Não dei cabo de tua miserável vida essa noite?
Como podes ter saltado para fora da sepultura?




27.8.09

OS RUTILANTES - LUCIANO BARRETO

NOTA DO BLOG: A data da publicação original deste conto é 22/11/2007. Agora, por ocasiao de sua análise e interpretação no tópico MESA NEGRA do forum da Camara dos Tormentos, ele é republicado.

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Luciano Barreto, contista de Campos dos Goytacazes, Rj, nos brinda com uma obra arrepiante; um misto de terror sobrenatural com a mais pura ficção-fantástica.; Os rutilantes evoca ares de Lovecraft em suas tétricas linhas. Boa leitura!









Os Rutilantes




Luciano Barreto





Era tarde. Passava das três horas da manhã. Enquanto Cleide retornava do banheiro percebeu uma iluminação pelas frestas da porta da sala. Correu ao quarto a fim de despertar o marido. A luz não se estagnava na porta. Passava lentamente pelas janelas e pela porta outra vez. Alguém, com uma lanterna, parecia circundar a pequenina casa. A varanda não possuía nenhuma luz. Isso não trouxe boas interpretações a ela que ao virar-se, já em seu quarto, apavorou-se ao olhar o rosto de sua filha maquiado por uma lúgubre réstia da porta.

— Eu os vi pelo buraco da fechadura. São magros, rápidos e medonhos, pois brilham na escuridão. Eles têm tentáculos no crânio, perto das orelhas. Suas cabeças são obovais. Seus olhos, brilhantes, não denotam boas intenções. – resumiu a menina que tinha o rosto à sombra.

A adolescente estava excitada com a celeuma que se iniciara devido a chegada das luzes brilhantes que rodeavam a pequena casa.— Menina, quem ordenou a você fazer isso? Eu sou seu pai e mando em você.

— Eu apenas os olhei, pai. – Disse a menina que tinha dezessete anos e chamava-se Vilma. Ela estava num torpor aterrador.Os três estavam numa casa distante do centro de uma pequenina cidade do interior fluminense. Vinte quilômetros separavam aquela simples casa, de telhas francesas, de outra mais ao norte. Os cômodos eram separados por paredes altas, mas incompletas. A casa não possuía foro no teto.

Sérgio abriu o armário e armou-se de um rifle com cano duplo. Depois os três seguiram para a sala. A menina aos empurrões. Numa ação investigativa, Cleide deu um grito quando avistou uma das criaturas. O ser apareceu, brilhante, depois que ela abriu o vidro da janela lentamente. Da escuridão da varanda havia surgido um rosto com tentáculos balouçantes que emanavam uma luz de matiz jamais vista por um ser humano. Uma cor inclassificável. Numa intensidade chamejante.

— Ah! – Um grito de horror e ela empurrou a babinela, trincando o vidro.— O que foi? – Perguntou Sérgio, que estava, de cabeça baixa carregando a arma.

— Também acabei de ver um. Era horrível. Tinha cobras brilhantes que moviam-se em suas orelhas. Era um vulto de uma coloração estranha. Eu nunca vi aquela cor. Nunca vi. Oh meu Deus. Eu jamais vi aquela cor horrível.

— Sai da frente. – Ordenou o homem que posicionou os canos da arma no babinela e puxou o gatilho. O som ecoou pela casa, reverberou no teto e voltou, deixando os adultos apavorados.O lado de fora continuou silente após o tiro.— Será que você o acertou? – Questionou a esposa.

— Que eles não nos ouçam, mas são ignóbeis e espertos. – Concluiu a menina.

— O que sabe sobre essas coisas, sua xereta?— Eles estão aqui antes de nós. Antes de todos nós. Têm algo que o humano sempre sonhou: a invisibilidade, que para eles não é de grande valia. Pois só são perigosos na escuridão... – A conversa foi interrompida por sons oriundos do telhado.

— Deus. Estão no telhado. – Gritou Cleide em pânico.— Sim. Já, já eles... – a pausa na fala da menina pareceu demorar uma eternidade e assustou os adultos – irão entrar. – Profetizou a jovem.— Se você não fosse minha filha eu atiraria em você. Poderia jurar que você é um deles. Como sabe isso tudo? – Indagou o pai com o rifle apontado para a menina.

— Foram contatos oníricos. Começou com um terrível pesadelo. Mas agora é um sonho. – Relatou a adolescente, lacônica.

O chefe da família apontou o rifle para o teto, mas foi interrompido pela esposa.

— Shhh! Ouçam. Está tudo quieto demais.- Segundos depois Cleide tornou a gritar ao ver uma telha sendo retirada do lugar, deixando um buraco no teto que mostrava um pedaço do céu noturno. Um céu nublado com nuvens rosadas.

— Olhe o telhado, Sérgio. Abriram o telhado. Atire neles. Mate-os. – A esposa berrava de horror.

— Merda. – A arma bailou, um pouco, em suas mãos, mas ele atirou duas vezes pelo buraco destelhado. Não atingiu nada.— Será que já entraram? Vou procurá-los nos quartos e já volto.— Não. – Gritou a esposa. Mas o homem a ignorou e partiu. Voltou em alguns minutos.

— Não estão aqui. Ouviram os tiros e correram com medo. Tiveram medo de levarem chumbo.
A menina sentou-se na cadeira com um sorriso estranho. Ficou perto do interruptor de luz. Com uma fleuma medonha, entoou uma canção assustadora que parecia ser uma profecia em forma de música.




Eles são antigos,
Não são amigos
E Louvam o mal
Apague a luz e verás;
São apavorantes.
Eles são os rutilantes...


Não completou a frase. Apagou a luz e silhuetas brilhantes e de cores estranhas habitavam a sala. O horror fez a mulher berrar, outra vez, histérica. Seu grito misturou-se a voz de Vilma, que tornou a cantar a lúgubre letra seguida por uma melodia apavorante a qual parecia emanar das luzes que contornavam os seres, e foi abafado depois que uma silhueta moveu-se rápido ao seu encontro. Somente um baque surdo tornou-se audível. Algo sendo quebrado. Talvez um pescoço. Sérgio engatilhou o rifle e disparou várias vezes em direção a cor que calou sua esposa. Vilma ria loucamente sobre a cadeira e gritava “Só aparecem na escuridão. Só os vemos na escuridão. Não fiquem na escuridão com eles.”. Depois que a arma do homem caiu ao chão, ele urrou de dor. Havia duas silhuetas imensas perto de dele que balançavam em movimentos decididos.Vilma calou-se quando reacendeu a luz incandescente da sala. Reparou no corpo de sua mãe, com vários orifícios feitos pelos projéteis saídos do rifle, que tinha o rosto virado quase totalmente para trás numa cena tétrica. Ao lado um amontoado de carne misturado a roupas. A jovem percebera que aquilo, a poucos minutos, fora seu pai. Caminhou até o centro do cômodo e falou enquanto olhava ao redor. Com olhos investigativos e trêmulos.— Pronto. Agora quero ser uma de vocês. Levem-me daqui. Levem-me desta vida inoportuna.

Então ela assustou-se quando escutou a lâmpada quebrar-se e a escuridão a engoliu como um tubarão engole um pequeno peixe. Vilma não estava preparada para aquele momento caliginoso. Estava rodeada dos seres brilhantes com tentáculos tremeluzentes. Um deles introduziu um tentáculo fosforescente no ouvido da jovem com uma rapidez estupenda que a impediu de qualquer reação. Tocou, com as ventosas malignas, seu cérebro. A extrema dor que sentiu, a fez zumbrir-se. Os fluídos que deixavam seu corpo, via tentáculo, faziam pulsar a horrível cor que chamejava do rutilante. Por fim, tornaram-na um zumbi que passou a lucilar, pelos olhos, a mesma cor indescritível. Mas Vilma tinha uma bizarra diferença. Poderia ser vista na claridade. Era visível.

Nisto a criatura-zumbi, após um pigarro assustador, exclamou de dentro da escuridão com uma voz apavorante:

— Vamos para o norte. A vinte quilômetros daqui existe outra casa.Um rutilante saiu de sua frente e deu passagem ao zumbi que foi à cozinha, caminhando na escuridão. Eles seguiram-na numa procissão maligna. Lá, ela acendeu um candeeiro. Tinha um rosto macilento na claridade. Abriu as tramelas da porta lentamente e pôs-se a caminhar para o norte. Meia hora mais tarde, iluminada pela fraca luz do lume que carregava, escutou o som de um veículo se aproximando. Percebeu a iluminação dos faróis. Quando o carro encostou ao seu lado, levantando poeira, ela constatou, sem qualquer reação, que era uma viatura da polícia estadual. O policial a inquiriu sobre o que pretendia fazer naquele lugar ermo àquela hora da madrugada e se estava tudo bem. A jovem pediu para que os policiais desligassem os faróis. Mentiu, astutamente, dizendo que havia um bandido escondido atrás de uma moita perto da cerca de arame farpado. Os policiais pegaram duas lanternas, desligaram os faróis, sacaram as armas, desceram lentamente do veículo e perceberam quando ela quebrou o candeeiro na lataria do carro de polícia, deixando-os na mais profunda escuridão. Apontaram a arma para os dois olhos brilhantes da jovem, mas quando a ouviram cantar, em voz baixa, estagnaram-se de horror.


Eles são antigos,
Não são amigos
E Louvam o mal
Apague a luz e verás;
São apavorantes.
Eles são os rutilantes...


Foi pelo vidro traseiro da viatura que um dos policiais viu os contornos, de cores inenarráveis, bailando num crânio oboval, orlado com membros tentaculiformes. O homem girou-se, tentando surpreender o que quer que fosse, mas antes de findar o movimento já estava morto. O grito do outro policial denotou muita dor na hora da morte. A menina-zumbi ficou extática a olhar as estranhas cores moverem-se rápidas e cruéis, durante o ataque. Em seguida pegou uma das lanternas no chão e continuou seu caminho. Então, as primeiras gotas de chuva começaram a cair.A sorte dos moradores daquela casa, mais ao norte, era que em poucos minutos amanheceria. Contudo essa sorte estaria fadada ao término. Pois o dia não duraria para sempre.

18.8.09

O VISITANTE DO ESCURO - HENRY EVARISTO




O VISITANTE DO ESCURO

Henry Evaristo

Os livros eram a única companhia de Mendel no escritório da administração. Não gostava da sensação de solidão que o lugar impingia-lhe e muito menos da determinação da direção para que mantivesse as luzes externas apagadas a fim de surpreender algum invasor. Para diminuir a irritação pensava insistentemente no salário e nas horas extras que receberia com as quais poderia finalmente pegar um ônibus e ir passar o natal com seus filhos no estado visinho; ademais, era o segundo emprego emprego fixo que arranjava em mais de cinco anos; mas o primeiro no turno da noite.

Como se não lhe bastasse o fato de seu ofício macabro situar-se às margens de uma estrada que, à medida em que o sol se punha, ia se tornando cada vez mais perturbadoramente deserta, ainda lhe apetecia deveras a leitura de textos terríficos tais como A SOMBRA DO DESCARNADO e O ANDARILHO DA NOITE, ambos romances medonhos de seu escritor favorito, o canadense Norbert Durand.

Sua função era guardar o estabelecimento não permitindo a ação dos vândalos e ladrões de túmulos que vinham agindo desmesuradamente nos últimos dias desde que o vigia anterior demitira-se sem mais explicações. Para isso, a parede central da sala de madeira nos fundos do terreno contava com uma enorme janela que possibilitava uma visão privilegiada do lugar.

Naquela noite em específico as leituras apavorantes que fizera desde cedo o obrigaram, por volta das 23 horas, a cerrar as pesadas cortinas que ladeavam a vidraça de sua janela de vigília. É que a combinação entre os horrores que lia compulsivamente nas páginas amareladas e a visão das lápides imersas nas trevas da noite do lado de fora não estavam lhe fazendo bem aos nervos. Mais de uma vez tivera que interromper a leitura para, de lanterna em punho, dar uma olhada nas imediações por causa de estranhos ruidos que notara em meio ao gemido do vento invernal.

A primeira vez imaginara ter ouvido demasiados latidos de cães das redondezas e, lá fora, chegou mesmo a ter que espantar alguns que se aglomeravam em frente a um portão lateral. A entrada dava acesso diretamente para algumas covas simples no final do cemitério, onde o terreno entrava em franco declive ao se encaminhar para onde eram enterrados os indigentes.

A segunda interrupção em sua leitura foi provocada por sons distantes de batidas surdas que alguém parecia estar desferindo insistentemente em alguma superfície resistente. Às implicações desta possibilidade ele preferiu renunciar e resolveu não sair de dentro da saleta. Todavia, a partir daí, manteve-se involuntariamente alerta e não esqueceu de trancar bem a porta.

Estava quase que totalmente absorto novamente em seu passatempo quando, de repente, avistou com o canto do olho um vulto escuro passar correndo bem diante à janela. Ergueu-se de um salto e sacou o revolver. Tremia. Lentamente dirigiu-se até a porta, mas, logo depois, desistiu e resolveu dar uma espiada para fora através da vidraça.

Aproximou-se da superfície fria, e olhou.

Não avistou absolutamente nada e ficou cismando se não deveria parar de ler aquelas coisas por aquela noite. Foi quando o animal saltou da escuridão quase se chocando contra a janela. Mendel se jogou para trás e se deixou cair sobre a cadeira que ocupava antes. Por um momento sua visão se embaralhou de tanto medo. Depois viu, do lado de fora, um grande cão marrom, de orelhas em pé, que fitava para o lado de dentro ofegante e amedrontado. Arfava de tal maneira que era possível ver seus pelos se agitando sobre a pele. Imediatamente Mendel lembrou-se da passagem que as chuvas torrenciais da semana anterior haviam aberto num trecho do muro setentrional do cemitério. Elas não davam passagem a nenhum homem, mas poderiam ser perfeitamente caminho para um exemplar daqueles. Aquilo acalmou e retirou a aura de "coisa sobrenatural" que o cão já estava assumindo na mente afetada do pequeno vigia.

Porém, algo parecia estar brutalmente errado com a cena. Aquele animal estava mortalmente amedrontado e olhava alucinadamente para dentro do posto de vigília, para os olhos de seu único ocupante. E aproximou-se da janela, pouco antes de desaparecer na noite, como que a implorar que lhe abrissem a porta.

"É de grande porte, como um Mastiff." Pensou Mendel. "Do que teria medo afinal?".
Resolveu afastar o pensamento e voltar a sua leitura. O pobre bicho já deveria estar longe. Com certeza retornara para a estrada, pois o ouvira emitir um ganido curto em algum lugar oculto de sua visão. "Provavelmente arranhou o lombo" Pensou. "Ao se arrastar de volta pela passagem estreita por onde entrou".

Baixou novamente a cabeça e recomeçou. Desta vez, no entanto, demorou bastante a conseguir atingir o mesmo nível de concentração com que iniciara seu turno. A noite ao redor de seu posto assumira uma outra conotação em sua mente. Para ele aquele maldito cemitério bem poderia estar sendo visitado pela entidade que vagava por aquelas estradas. Dizia-se que já fora avistada centenas de vezes se escondendo pelas cercanias. Ninguém saberia dizer o que era, e ele mesmo não acreditava em assombrações. Muitos juravam que se tratava de um vampiro; outros a chamavam de demônio. E muitos sujeitos de fora já haviam visitado a região com suas máquinas para tentar encontrar alguma coisa concreta, mas nunca obtiveram êxito algum. Em fim, para Mendel, até aquela noite, as lendas locais nunca tinham tomando tanta consistência.

De sua cadeira de madeira, com os livros de Durand em sua frente, Mendel passou a imaginar o que faria se de repente a tal fera surgisse rosnando em sua janela. Como aquele estranho cão, ela o olharia nos olhos, mas depois, em vez de desaparecer, se jogaria contra o vidro até conseguir entrar para arrancar fora suas entranhas. Não pôde mais fitar aquele quadro negro; levantou-se, correu até as cortinas e as fechou depressa evitando a todo custo olhar para a escuridão do lado de fora. Tinha a todo momento a impressão de estar ouvindo um ganido de dor canino que viesse de algum lugar nos fundos do cemitério.

Depois foi até o banheiro. Precisava aliviar a bexiga da pressão que ali surgira. Abriu o zíper, segurou a ponta do cinto para não molhar e soltou o fluxo que lhe oprimia o baixo-ventre. Nem bem começara ouviu um baque violento contra a vidraça que o fez virar-se de súbito para fora do minúsculo compartimento; ato continuo, sacou sua arma e disparou aleatoriamente atingindo a única lâmpada que servia de iluminação para o lugar onde estava. A sala mergulhou imediatamente numa escuridão ainda maior do que aquela tão terrível que dominava o mundo do lado de fora. E Mendel ficou paralisado de medo.

O revolver tremia loucamente em sua mão. Seu instinto de sobrevivência lhe ordenava que disparasse contra qualquer coisa que se movesse à sua frente. E ele, com seus olhos contraídos de pavor, via pouco ou quase nada em meio a escuridão.

Mendel era novato. Naquela situação não lembrava mais do que lhe fora dito quando de sua contratação na semana anterior. Não lembrava do interruptor que acendia as luzes exteriores; não lembrava sequer do telefone na parede atrás da porta do banheiro. Lembrou-se, no entanto, e devido à urgência da luz, da lanterna guardada na última gaveta de sua mesa. Ia avançar para lá quando, de súbito, a vidraça estourou com um novo impacto, e se estilhaçou em mil pedaços cortantes que saltaram para o espaço interior com rapidez assassina. Fixaram-se em toda parte, espetando papéis em cima da mesa, rasgando as páginas amareladas dos livros de Durand e atingindo um dos olhos do vigia em desespero. Mas os estilhaços não adentraram o modesto escritório sozinhos. Em meio a nuvem mortal tombou inerte ao soalho de madeira uma massa meio disforme de carne lacerada e ossos.

Mendel jogara-se para o lado de dentro do banheiro após sentir o impacto do objeto cortante em seu olho esquerdo e agora estava dominado por uma dor aguda enquanto ficava cada vez mais banhado em sangue. Mesmo assim pôde notar que partes das cortinas que não haviam sido dilaceradas continuavam baixas e que, apesar do vento do lado de fora, não podia ver objetivamente o que havia por lá. Olhou para frente em direção ao cadáver ensangüentado que jazia a poucos metros de onde estava e reconheceu, por entre a turvação que afetava sua visão, o cão marrom que havia visto pouco antes. Estava comido, devorado parcialmente. Mendel percebeu que sua cabeça estava aberta e lhe faltavam coisas lá dentro. No entanto, alguns de seus membros ainda se moviam em espasmos curtos.

Lentamente tentou se locomover. Procurara fazer o mínimo de barulho possível, mas esbarrou em um monte de vidros quebrados que lhe abriram um corte profundo em uma das mãos. Ele gritou de dor, foi inevitável, e seu grito chamou a atenção da coisa que estava do lado de fora, pois os frangalhos das cortinas se ergueram até quase descobrir uma silhueta alta e magra que se recortava contra a fina luminosidade do nevoeiro que se formara com a chegada da madrugada.

Com o impacto que sofrera, Mendel perdera sua arma e tudo o que se passava por sua cabeça naquele momento era o fato de que não podia disparar contra aquilo que estava do lado de fora tentando entrar. E também não podia fugir no escuro sem nada enxergar que fosse muito além de uma nuvem vermelha em seus olhos.

Resignado, prendeu a respiração e esperou que a aparição se revelasse por inteiro conduzindo-o a um horrenda alvorada de medo e dor. Foi então que veio a voz e a visão que o enlouqueceram. Ao mesmo tempo em que os restos da cortina se ergueram e ele viu.

Do lado de fora, erguendo os restos de tecido que pendiam dos trilhos de alumínio logo acima da janela, estava um homem de terno - um terno simples, escuro, discreto; a vestimenta padrão com a qual enterravam os mais humildes da região. Tinha a pele amarelada e falou com uma voz que não parecia ser deste mundo:

"Estou com fome! Estou com fome! Dê-me meu cão!"

Mendel perdeu os sentidos e assim foi encontrado na manhã seguinte pelos zeladores. A polícia foi chamada e os agentes passaram muitos dias tentando entender o que se passara. Apesar dos danos na estrutura física do escritório e no corpo do funcionário, nada indicava a presença de uma segunda pessoa no local durante a noite em questão. Ele e o cadáver semi-devorado do cão foram encontrados a meio caminho dos fundos do cemitério, no lugar em que o terreno se tornava descendente e levava à ala onde eram enterrados os indigentes.

Pensou-se que o vigia enlouquecera de repente e causara tudo ao local e a si mesmo. Inclusive, num ato de extrema insanidade, teria matado e devorado o cão de rua. Argumentou-se que seus ferimentos teriam sido feitos pelo animal em desespero a lutar pela vida; mas quem quer que o visitasse em seu quarto acolchoado no sanatório municipal, e conseguisse observar mais detalhadamente, poderia jurar que as marcas que se espalhavam por seu corpo, em lugares que ele mesmo jamais poderia alcançar, eram de grandes dentadas humanas.

14.8.09

Resultado do 2º Exercício de Elaboração de Contos da Câmara dos Tormentos

No segundo exercício de composição de contos de terror inspirados por imagem realizado na Câmara dos Tormentos, os membros do forum deram grandes demonstrações de suas genialidades sombrias. A qualidade inconteste apresentada no primeiro exercício teve parâmetros ainda mais elevados no segundo. É com muito orgulho que reproduzo estes contos agora, para que todos os amigos da C.T. testemunhem o que está sendo criado por nosso grupo dentro deste universo da literatura fantástica nacional. Boa leitura!




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O CAÇADOR


Flávio de Souza




Lá fora a tempestade desabava pesada e sem piedade daqueles que foram pegos de surpresa. Os poucos minutos que se passaram desde que as primeiras gotas surgiram se mostraram mais do que suficientes para tornar em rio a alameda estreita de paralelepípedos que margeava os limites daquele velho sobrado. A fúria da tormenta parecia querer lavar e purificar o ambiente, como alguém que prepara a casa para receber uma visita desejada. A noite que havia começado estranhamente escura antes da chuva, tornara-se um completo mar de trevas depois dela, sendo acentuada pela usual falta de energia elétrica que costuma surgir em situações desse tipo. Dentro da residência parecia que as trevas eram ainda mais intensas do que lá fora, apenas uma tímida chama bruxuleava oriunda de um desgastado toco parafinado. Toda a mobília daquele cômodo de dimensões reduzidas se resumia a uma cadeira e uma mesa, ambas insinuavam as marcas do tempo, exalavam um odor nauseante de mofo e decomposição, o velho que fazia uso dos móveis não aparentava melhores condições, a pele de seu rosto apresentava profundos sulcos e irregularidades. Enormes olheiras denunciavam noites mal dormidas, no entanto o homem não demonstrava sinais de cansaço, pelo contrário, parecia eufórico como se estivesse prestes a realizar um grande feito. Sua atenção estava totalmente voltada para o curioso artefato depositado sobre a mesa, um livro cuja aparência deixava a mobília com aspecto de recém saída da marcenaria. Sob uma avaliação mais precisa, seria possível jurar que a capa do livro em um tempo remoto já revestira o corpo de alguém. Símbolos de um idioma esquecido preenchiam as páginas amareladas e gastas, nada significariam para uma pessoa comum, mas ele estava bem longe disso, não havia segredos nesses assuntos que ele não desvendasse. As lacunas que se abriam entre as palavras do texto formavam um bizarro jogo de palavras cruzadas que era preenchido sem hesitação pelo homem. Não fazia uso de uma tinta comum na pena, traçava suas linhas com o sangue roubado da jovem que jazia no inicio da escadaria, era imprescindível que houvesse um pagamento pela dádiva que esperava receber, uma vida seria pouco, tiraria duas, dez, mil se fosse preciso, apenas o seu objetivo importava agora, nada mais. Afinal, quando o Caçador chegasse, e ele chegaria, não haveria limites para a sua fome, a carne e o sangue dos viventes ainda seria pouco, não haveria mais escuridão porque a luz seria apenas uma vaga lembrança na alma dos atormentados, a distinção que as torna irmãs não mais existiria, e o mundo passaria a apresentar uma invariável atmosfera melancólica e previsível, mergulhada em uma repetição de tormento e danação. Ele vislumbrara esta realidade e desejava ser parte ativa desta nova ordem, temia servir de gado para a horda caso um outro percebesse a chance que agora estava diante de si. Uma última lacuna, os derradeiros riscos com o escarlate pecaminoso, a senha para a comunhão entre os dois mundos. A gota que exerceu o papel de ponto final, imperceptivelmente sinalizou para que o ar gelado da noite iniciasse uma movimentação ritmada e ruidosa. As rajadas do vento executavam uma sinfonia cujo maestro seria o próprio senhor das terras esquecidas. Quem olhasse pela fresta da janela se surpreenderia com a materialização gelatinosa e levemente transparente que indicava o surgimento do Caçador. Nenhum vestígio de felicidade, nenhuma sombra de um bom pensamento, nada disso poderia coexistir com aquela criatura. A massa, disforme no inicio, começou a encorpar imediatamente a medida que partículas dos sentimentos vis da humanidade, que estavam suspensas no ar, se identificaram e se uniram à essência que a compunha. A nuvem fétida se movimentava lentamente enquanto os contornos iniciais da criatura deixavam claro que o caminho era sem volta, o ato definitivo estava na iminência de se concretizar.
Uma cabeça enorme, ornada com chifres que se deslocavam incessantemente, venceu os domínios do sobrado, as fileiras de dentes retorcidos e afiados destacavam-se na mandíbula escancarada, seriam a parte mais chamativa do semblante hediondo do ser, se não fossem as órbitas gigantescas e amareladas que se projetavam como dois pequenos sóis trazendo uma luminosidade intensa e mórbida ao interior do pequeno cômodo. Seu longo pescoço terminava em um corpo revestido por placas duras e escamosas, de onde inúmeras garras longas e negras, caudas sinuosas e cabeças detentoras de bocas famintas se projetavam numa mescla aterradora de almas perdidas em um único receptáculo. O velho não demonstrava surpresa perante a visão da criatura que serpenteava ao seu redor, o medo era inegável no que ele chamava de coração, mas ainda assim exalava uma confiança inabalável. O Caçador das trevas olhou diretamente para ele e fazendo uso da voz que há séculos não era ouvida nas terras mortais disse-lhe:
- Preparado para a passagem, humano?
- Perfeitamente, mestre!
O velho estendeu o braço direito e com uma lâmina virgem abriu um longo talho fazendo verter a essência rubra que circulava em suas veias. O caçador deixou, então, pender uma longa e áspera língua bifurcada, e com ela percorreu a pele manchada do homem, o sangue parou de gotejar enquanto o mortal sentia os músculos entorpecerem. O ser recolheu subitamente a língua, deixando escorrer uma gosma avermelhada.
- Não, humano! Não foi com esse pagamento que você me chamou!
- Como assim, mestre?
- O sangue, mortal, esse não é o sangue constante no livro!
- Obviamente que não, mestre. Esse é o sangue do sacrifício...
- Não, verme, não! O sangue do reclamante deveria preencher as lacunas, somente ele.
- Desculpe-me, mestre, eu, eu me enganei e...
- Basta, mortal, basta! Não temos muito tempo, o elo vai se fechar.
- O que devo fazer?
- Rápido, a lâmina, sacrifique-se em minha causa!
- Como? Não, mestre! Eu devo estar ao seu lado, não devo morrer...
- Depressa, humano, é o único jeito de permanecer aqui, é o único jeito!
- Não, mestre, não! Não posso me matar!
O homem largou a faca, empurrou a mesa e iniciou uma tentativa de fuga. O vento intensificou os açoites fazendo as folhas amadeiradas da janela dançarem perante a sua vontade. Era o indício de que o vórtice preparava-se para desaparecer.
- Não fuja, mortal! Não fuja!
O velho ignorava os apelos do Caçador, para ele matar não era uma tarefa complicada, mas atentar contra si próprio nunca fizera parte de seus planos. A agilidade com que descia os degraus não condizia com a idade que aparentava possuir. A urgência era um estímulo eficiente. Ao dobrar o corredor estaria apto para ganhar as ruas, e então lhe restaria torcer para que o elo se desfizesse. Durante alguns instantes parecia que conseguiria, mas a sorte é uma dama temperamental. Os fios alvos de sua cabeça foram agarrados e o couro cabeludo perfurado por alguns dos muitos ganchos afiados que enfeitavam os dedos do Caçador. Enquanto era arrastado escada acima, sentia como se um ácido começasse a percorrer o seu corpo. Doía, mas não era uma dor meramente física, era mais, sua alma parecia queimar. O desespero lhe dominou, pois sabia que aquilo seria só o começo.
O demônio posicionou o homem de forma que este permanecesse ereto e imóvel diante de si. Já não seria possível para ele, naquela ocasião, tornar este mundo uma extensão de seus domínios, mas, pelo menos, não voltaria faminto para o lugar de onde viera. Chegou bem próximo do velho, perto o bastante para fazer com que este sentisse a pele do rosto ser queimada pela fumaça que escapava das narinas da besta. O homem não ousava abrir os olhos, mas não faria diferença, logo ele se acostumaria a todas as sutilezas da horda, pois enquanto sentia sua carne ser provada pela voracidade do Caçador, enquanto tentava inutilmente lutar contra a língua animalesca que lhe drenava os órgãos e vísceras, enquanto seus ossos estavam sendo triturados por mil dentes, enquanto estava sendo devorado vivo, começava a sentir sua alma incorporando-se à estrutura daquele que o dominava. Logo ele seria mais um mesclado ao corpo do Caçador, e esperaria pacientemente para que alguém oferecesse a própria vida para trazer-lhes liberdade e alimento.

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- Então é isso?
A pergunta do gerente de edição da revista pareceu-lhe debochada e maldosa.
- Sim, senhor Medeiros. Esse é o capítulo final.
- Esperamos longos sete dias por isso?
- Bom, se o senhor desejar posso refazer algum tópico ou...
- Não, não, não. Já não temos tempo. Fica assim mesmo, mas não garanto a renovação do contrato para o próximo período.
- Mas senhor Medeiros, eu fiz o melhor que pude...
- O seu melhor mostrou-se insuficiente para a revista.
- Ao menos o senhor poderia deixar o último cheque, então?
- Não me faça rir! Você está nos devendo. Esqueceu dos empréstimos? Só pode ser piada...
O executivo deixou o apartamento do escritor sem se despedir, na verdade, sem olhar para trás. O rapaz permaneceu calado, acompanhando apenas com os olhos marejados a silhueta esnobe se distanciar e desaparecer pelo corredor. Ele estava cansado, mas não se lamentaria novamente. Caminhou lentamente até a escrivaninha, abriu a gaveta e retirou alguns objetos, espalhou-os a fim de que pudesse admira-los por alguns instantes. Então começou a fazer o que mais gostava, mas não utilizava os teclados de um computador, não, valia-se de uma pena de prata e de si mesmo como tinta para isso. Algumas vezes a inspiração aparece de experiências próximas e palpáveis. As respostas surgiam fáceis como uma sucessão de palavras em cascata, e ao sentir que havia terminado, virou seus olhos para a janela na ânsia de vislumbrar a noite estrelada que começava a dar lugar para a cortina de nuvens pesadas e frias. O sangue escorria farto pela extensão do braço mutilado, as gotas formavam uma pequena poça sobre o desgastado piso cerâmico do chão. O vento soprava forte, logo o vórtice gelatinoso se formaria e a areia do tempo se espalharia de vez. Alcançou o canivete que havia separado e deixou escapar uma lágrima tímida. Então, posicionou a lâmina na pele macia do pescoço e com um golpe firme e preciso abriu uma longa e profunda fenda. Imediatamente caiu ajoelhado e sentiu a vida abandonar o seu corpo. Antes de fechar definitivamente os olhos ainda pôde notar uma figura conhecida surgir no vão da janela. O Caçador encontraria um novo mundo para explorar, e uma caça em especial o aguardava, sendo cuidadosamente recomendada através de um singelo bilhete no livro sobre a escrivaninha, escrito num dialeto desconhecido pelos homens, com o sangue oferecido de bom grado estava um nome: Edgar Medeiros.


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O CONTADOR

Celly Borges





Aquele homem com roupas surradas e a face desgastada, talvez pelo trabalho a qual fora incumbido, já não esperava mais pelo fim de um dia, o início da noite, dali não se podia saber e nem se importava, afinal estava preso.

Nem ao menos tinha uma casa, uma família. Um filho que viesse lhe receber depois do expediente, uma esposa amorosa. Nada. Agora só desejava mesmo era uma cama confortável, mas tudo o que tinha era a cadeira que o acompanhava há anos.

Sua desdita era tamanha que ficou preso naquele lugar desolado, tanto quanto sua vida fora até aquele dia, e também depois, quando aceitou, sem saber, aquele infeliz trabalho.



Naquela manhã, recebera uma estranha visita. Um homem muito alto, e elegante, vestido com roupas negras, seus olhos eram no mesmo tom e vazios. A figura estendeu a mão direita ao homem que abrira a porta, e sem dizer palavra, a partir daquele momento, quando a mão foi apertada, tinham um trato.

De repente tudo escureceu, mas aquela figura estava iluminada e sorria. O homem teve a sensação de que caiam.

O que fizera ele?

Somente quando desceram no meio de um salão com paredes de barro que eram uma afronta ao belo chão de mármore escuro, que a figura começou a falar, de forma calma.

– A oportunidade lhe foi dada, e você aceitou.

No minuto seguinte a figura não estava mais ali. O homem, sem entender, e com muito medo, olhava para todos os lados, quando viu um ser desfigurado, absurdamente velho e sofrido, entrar na sala, e ir a sua direção. Convidou com um aceno de mão a entrar em outra sala.

– Você vai trabalhar aqui – disse com uma voz rouca como se há muito não fosse usada.

Ele conduziu o homem à escrivaninha e o fez sentar.

– Pegue a caneta, rápido!

Ele pegou

– Escreva seu nome – entregou um livro em branco, novo.

Ele escreveu.

O ser desfigurado riu, gargalhou alto. O homem se assustou e observou quando o estranho saiu, ainda rindo e fechou a porta.

Pela janela, almas começaram a entrar e sobrevoar a sala, como se esperassem algo. Eram muitas almas, cada vez mais, tomando todo o espaço. Entrementes, o ser desfigurado voltou.

– Você aceitou o trabalho, agora comece a anotar cada alma que passa por aqui. Meu tempo se encerrou, vou para casa. PARA CASA!!! – disse como se estivesse enlouquecido. Retirou-se.

O homem, ali parado, começou a anotar, uma por uma, todas as almas que por ali entravam e somente assim elas seguiam seus caminhos. Num certo momento, a alma do ser desfigurado passou por ali, e também foi contabilizada.



E assim, durante décadas e milhões de livros, precisava de um substituto.

Na Terra estivera morto em vida e o mesmo acontecia no Inferno.

Mas ainda teria muitos anos pela frente até se tornar tão deformado quanto aquele ser a quem substituiu.

Porém, nem um só dia deixava de clamar aos céus por piedade.


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AO PAR












Victor Meloni




Outros tempos. Sim, é possível considerar tal afirmação, dada o teor sibilino e, de certa forma, nostálgico, da missiva em meu poder. Páginas e páginas de um argumento veraz, apesar do fantástico conteúdo. Como o sei? Bem, diria que minha vetusta condição fornece a garantia necessária. Os papeis de passado mais remoto ainda, com vestígios de uma era abismal, chancelam seu vertiginoso tirocínio. E quanto a eles? Bem, eles ficam ali observando laboriosamente minhas considerações, e corroboram, também, com a afirmação. Vizinhos dos pensamentos que me escapam, estas elucubrações aquiescendo a exstante vontade que os norteia. Um exército impertérrito, latente aos olhos anestesiados dos que bebem da necedade do presente. Inquilinos na minha abóboda opaca, e que mergulham em tácita disposição nas sombras da alma. A nostalgia que me assalta chega a obsedar a lânguida claridade que emana do velhentado pedaço de cera ao meu lado. Mas, existe impreterível vênia à sua tarefa, então, ela estará perenemente ali, em companhia tempestiva. Foi delegado, a mim, reescrever algumas passagens da teleologia tempestuosa em minhas mãos, uma vez que existe, em dias hodiernos, um exagero de virtudes que moderam apetites e paixões, condições ineludíveis ao jugo lúrido que cresce, prospera, no fusco espírito dos homens. O esmero aplicado em minha tarefa alimenta-os, numa espécie de garantia do sucesso a espargir suas intenções biliosas que, ao final, se tudo der certo, irão constranger todo e qualquer alvedrio, por mais obstinada que seja a resistência. A fome (por todo tipo de matéria e manifestação) a opugna-los faz-se, sempre, premente. O provecto de minha situação ensinou-me que o desejo veemente destes pulula em esferas capazes que quebrantar a mais renitente das criaturas. Diria ser tal retentiva minha, o ensejo perfeito aos escritos nos quais estou empregado. Pois, de toda a ubíqua verdade, que muitos insistem em negar, a mais impassível e fria é a sempiterna existência destas linhas e de seu lancinante séquito. Ah, esqueci-me. E de seu fadado escriba.

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EU REUNO AS FORÇAS DOS ABISMOS!

Henry Evaristo






Na minha última noite sobre esta terra logrei reunir-me com meus conselheiros subterrâneos. Alguns vieram em carruagens de luz que deixaram estacionadas do lado de fora de meu decrépito solar, no céu negro de tempestade, como navios ancorados nas nuvens! Uns vieram em asas, onde traziam ainda outros presos como apêndices supurados.

Depois entraram pela janela, sem cerimônia. Não eram formosos, de uma maneira que pudesse agradar aos olhos de qualquer mortal. Mas suas presenças, ali diante de mim, estupefato, representavam tudo que poderia haver de mais belo no universo. A maneira como se locomoviam por meu quarto de escrever, se arrastando sobre as paredes em hordas como sangue-sugas intumescidas e amontoadas, e até largando sobre os móveis um limo esverdeado e mau-cheiroso, era mesmo arrasadora. Alguém menos versado nos caminhos da ciência teria enlouquecido no momento. Mas eu, que com eles convivera por toda minha vida, limitei-me a descrever em meus cadernos de manuscritos tudo o que faziam. E sorria quando se aproximavam no escuro e roçavam suas peles molhadas em mim! Posso mesmo admitir que experimentava algum tipo de prazer extremo e infernal...

Depois eles se acalmaram. Se sentaram onde podiam, pelas estantes e balaustradas, pousados como espectros alados, pelas bancadas, cadeiras e estantes de minha paupérrima biblioteca. E ficaram por ali, suspirando, dando gargalhadas aqui e acolá, e revirando os olhos. Às vezes sopravam em meus ouvidos suas opiniões escabrosas a respeito de nosso mundo, e eu podia sentir meus pelos se eriçarem ante as possibilidades por eles propostas.

Ficamos todos no recinto, como se nos estudassemos, mesmo após tantos anos de parceria. Aquele, no entanto, era um momento especial. Era a noite em eles vieram atender minhas necessidades, concedendo-me um reconhecimento por meus serviços prestados. Creio que foi Gargalon(1) que olhou pela janela, para as sombras que vagavam pelas ruas, e apontou orgulhoso a igreja negra que erigi em seu nome. Outro, desta feita Metraton(2), com seus muitos olhos, observou minha coleção de compêndios ocultos e sorriu orgulhoso. E o som que produziu estilhaçou todas as minhas taças de cristal.

Depois, ouvi uma intensa risadagem que vinha do subsolo da casa. Eram três de meus amigos que se divertiam com os rituais que encontraram por lá. Descontraídos, Mormo(2), Naamah(2) e Adramelech(2) fluiam por entre os corpos de meus sacrifícios e creio que se entretiveram com alguns pois pude ouvi-los estalar na escuridão do porão.

Depois de muito tempo, e quando eu já havia escrito tudo o que poderia haver para escrever, um outro amigo se aproximou de minha casa. Todos já esperavam sua presença e até reclamavam de sua demora. Augusto como a água mais límpida, adentrou minha biblioteca o honrado irmão Sammael(2)e trazia com ele, pendurado em um de seus peitos, o diabo Abaddon!(2)

Ai que alegria! Agora poderiamos dar continuidade a tudo! Ergui-me, pois, altivo como se eu mesmo fosse um deles. E apontei para a janela. Moloch(2) se acercou de mim, e me olhava com um certo escárnio. Me tocou na fronte, e sobre minha testa imprimiu um estigma. No mesmo instante, vi surgir nas nádegas de Astaroth(2) o nome de minha alma e ele era: SOBERBA.

Foi então que muitos vieram, brotando de todos os cantos mais escuros da casa, e me conduziram à sacada. Lá fora a noite pétrea grassava pelas esquinas do mundo e nuvens negras se reuniam num céu de pesadelos. Olhei para o horizonte e vi quando milhões de naves incandescentes brotaram de lá. Como um bando de insetos malignos, enxamearam por todos os lados e tomaram toda a abóbada celeste. Extinguiram-se todas as luzes da terra, e o mundo mergulhou nas mais profundas trevas do caos.

De minha sacada eu testemunhei o destino do homem ouvindo a gritaria das mulheres e das crianças, e todo aquele que lamentava, em todas as partes da terra, eu o ouvia em minha cabeça como se a própria trompa de Heimdall(3) é que soasse por entre minhas entranhas!

Sammael se aproximou. Veio de dentro de minha casa e pousou suas garras sobre meus ombros. Olhamos juntos para o céu e depois para o horizonte. E vimos a terra toda, ao mesmo tempo, pois tinhamos o poder. O Veneno de Deus(4) então me olhou nos olhos e queria que eu llhe falasse. Assim o fiz:

"Eis!" Disse eu e minhas palavras soaram como que amplificadas por algum sortilégio maravilhoso. Continuei: "Eis que vos entrego este universo de dores e escravidões em escâmbio por vosso reino no tártaro!". Dito isso ergui meus braços para o céu vendo surgir em minhas mãos duas bolas de fogo incandescentes. Ao meu ato todos os diabos me reverenciaram e saltaram para fora da casa, emanando dali como matilhas de coisas proscritas tomando todo o ar e todo o espaço da terra.

Vi então as massas comovidas se precipitando em abismos de desespero ante aquilo que viam se anunciando no céu. E de todos os rincões das matas mais distantes, vi saltarem as colunas de demônios, como hordas ígneas de morcegos gigantescos, que eu trouxera.

E foi assim que os diabos subiram para vosso mundo.

E foi assim que desci aos infernos onde reino incólume.


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1 - Demônio criado para este conto.

2 - Demônios da demonologia universal.

3 - Heimdall é um deus da mitologia nórdica que se anuncia tocando uma trompa gigantesca.

4 - O significado da palavra Sammael na cultura hebraica.

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CONTRIÇÃO TARDIA

Lino França Jr.




Voltou para o pequeno casebre onde passara os últimos malfadados meses. As intermináveis dívidas acumuladas em anos de gastanças e superficialidades lhe tiraram toda a fortuna herdada dos pais.
Tomado pelos efeitos do álcool, decidiu que não havia mais saída para sua situação. A desesperança invadiu sua alma, a ponto de lhe fazer idealizar a própria morte, como solução para todos os males que o atormentavam.
Aturdido, ainda pelo domínio da bebida no sangue, decretou que findaria com sua burlesca vida sem perspectivas.
Procurou sua velha garrucha de cabo de madeira no armário carcomido pelos cupins, em seu precário quarto revirado por roupas sujas, garrafas vazias, e uma coleção de famílias de baratas, ratos e pequenas aranhas.
A antiga arma de dois canos estava lá, abandonada em meio às teias de aranha no canto de uma gaveta imunda.
Esticou a mão para agarrar o instrumento, mas, entorpecido pelo vinho barato que tolhia os movimentos, perdeu o equilíbrio e caiu sentado no chão de forma grotesca. Riu da própria desgraça. A cena ridícula lhe dava ainda mais certeza do ato que queria realizar.
Levantou-se e conferiu que a garrucha estava devidamente carregada. Puxou a maltratada cadeira de carvalho no canto do quarto ao lado da janela. Com dificuldade, acendeu o que restara de uma vela derretida em cima de uma mesa. Pegou papel, pena e tinta com o propósito de deixar escrita a justificativa pela qual lhe assaltaria a própria vida infeliz.
Começou com rabiscos indefinidos, daquilo que deveriam ser palavras, mas aos poucos, conseguiu dar sentido a algumas frases. A cada ponto final, olhava para a garrucha que repousava sobre a mesa, e que estranhamente, começava a adquirir um brilho fantasmagórico. O vento começou a soprar com mais força do lado de fora, e pela janela aberta, ameaçava apagar a vela, que bruxuleava sua luz nas paredes manchadas. Conforme preenchia o papel, sentia que o ar dentro do pequeno cômodo começava a ficar denso, e assumia um cheiro de mofo, de coisas antigas e abandonadas. Começou a ouvir murmúrios e lamentações. Não conseguia reconhecer se eram vozes masculinas ou femininas, apenas que apesar de baixas, estavam cada vez mais perto de seu ouvido. Não era capaz de entender o que diziam; o que reclamavam, mas certamente, não era algo agradável. Sentiu medo.
Com o temor, começou a aguçar os sentidos, e os efeitos do álcool começaram lentamente a se dissipar em seu organismo. Levantou-se e tomou a garrucha nas mãos. Abriu a porta do velho armário de madeira e a recolocou na mesma gaveta. Porém, ao virar-se com o intuito de voltar à sua cadeira, percebeu sem entender, que a arma misteriosamente havia voltado para o lugar onde estivera repousando em cima da mesa.
O vento cortava a noite lá fora, e a chama da vela continuava a dançar com a corrente gelada que entrava pela janela. Sentou-se novamente na cadeira, e as primeiras gotas frias de suor desceram pelas têmporas. Tomou a carta nas mãos e amassou a folha, jogando-a no chão. A luz da vela se apagou.
Com os músculos retesados de pavor, buscou acender o toco de vela em cima da mesa, e ao fazê-lo, surpreendeu-se ao notar a carta límpida e em ordem no mesmo lugar.
Num ato desesperado, empurrou mesa, cadeira e os demais objetos, derrubando-os no chão com estrondo. A vela ameaçou apagar-se, mas mesmo com a chama enfraquecida pela queda, recuperou a parva luminescência.
Trêmulo, o homem alcançou o enferrujado castiçal e o ergueu. Foi então que se deparou com as aterradoras imagens.
Demônios dípteros, negros, em forma de serpentes, com longas caudas, de duas cabeças, escamosos, com bocarras cheias de dentes afiados, vertendo no ambiente seu hálito pútrido que impregnava o lugar.
O homem sentiu o ar lhe faltar nos pulmões. Entendeu que em sua desesperada intenção, havia atiçado os demônios que ansiavam por mais uma alma humana.
Ainda no chão, observou que segurava com firmeza a velha garrucha que brilhava diante do escasso fulgor da vela.


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A CANÇÃO DE LEONILDO

Luiz Poleto


Para Leonardo Nunes Nunes.



Existem mais coisas entre o céu o a terra, Horacio, do que sonha a nossa filosofia. Shakespeare, seu filho da puta; entra neste grupo também Hamlet por ter dito esta maldita frase. Eu teria vivido muito bem sem levar este famoso trecho em consideração, sem ao menos saber que ele existia. Mas existe, e eu e meu velho amigo Leonildo sabemos muito bem disso. Se estivesse vivo, Leonildo estaria esbravejando da mesma forma que eu.

Conhecia Leonildo desde pequeno, crescemos juntos, estudamos juntos, e até fomos para a faculdade juntos, embora tenhamos feito cursos diferentes. Depois da faculdade, nossas vidas também seguiram rumos diferentes, mas sempre mantivemos contato. Leonildo sempre foi mais inteligente, e mais criativo; assim, não foi surpresa alguma quando ele tornou-se escritor profissional.
Quando começou, foi de forma despretensiosa, escrevendo contos e publicando-os na internet. Seguiu assim por alguns anos até que seu primeiro romance foi publicado. Foi do anonimato ao estrelato em apenas alguns anos. Era um poucos escritores que conseguia manter a média de um livro por ano, todos sempre liderando as listas de mais vendidos – o que era uma surpresa, levando-se em conta que Leonildo escrevia, pasmem, livros de terror. Este fato também contribuiu para aumentar a sua notoriedade.

Mesmo com toda a fama conquistada, Leonildo não era adepto dos holofotes. Procurou manter o jeito reservado de sempre. Ao menos uma vez por mês nos encontrávamos, como nos velhos tempos, para atualizar os assuntos e jogar conversa fora. Nunca perdemos este hábito.

Depois do seu quinto livro publicado, Leonildo começou a ficar estranho. Não mais nos encontrávamos durante os quatro primeiros meses do ano, período em que ele estava trabalhando em um novo livro. Embora antes isso não o afastasse de mim antes, neste espaço de tempo era como se Leonildo não existisse – era simplesmente impossível encontrá-lo! Somente quando finalmente entregava os originais para a editora é que os encontros voltavam à velha rotina. Eu podia perceber que além de sua aparência física desgastada – o que eu supus ser por conta do ritmo de trabalho –, em nossas conversas ele mostrava-se assustado, algumas vezes disperso. Eu poderia até dizer que algumas vezes ele parecia distante e paranóico. Um dia, em uma de nossas conversas, ele sentenciou-me algo que parece estranho, surreal, e fruto e uma mente perturbada, que provavelmente já não distinguia mais o real da porcaria que ele escrevia. Ele disse:
– Preciso parar de escrever. Eu quero parar de escrever, mas eles não me deixam. Da última vez que tentei, fiquei desmaiado por dois dias no meu quarto. Quando acordei, fui direto para a minha mesa e escrevi sem parar, até terminar o romance. Não quero que eles me peguem novamente.
– Não estou entendendo o que você quer dizer. Quem são eles? – perguntei.
– Você não iria entender, ninguém iria entender. Todos pensam que eu escrevo aqueles livros, mas na verdade, apenas transcrevo aquilo que eles me pedem. Começou de forma inocente, mas agora, tornei-me escravo deles. Eles não me deixam parar.
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, a conversa foi encerrada. Os olhos do meu velho amigo jorravam cansaço e tristeza. Passei uma semana amargurado por ele.

No verão seguinte, durante o sumiço habitual de Leonildo, fui procurá-lo em sua casa, ignorando os pedidos que ele sempre fazia questão de reforçar quando chegava esta época. Eu estava realmente preocupado com a saúde de meu amigo, além de ter ficado intrigado com a estranha conversa que tivemos semanas antes. Entrei em sua casa sem ao menos bater à porta. Para não correr o risco de ser pego e mal interpretado, fui à noite. Ao entrar na escura sala, enquanto esperava meus olhos adaptarem-se à escuridão, fui surpreendido por uma estranha música; uma mistura de dança húngara com a tristeza que assombra algumas obras de Beethoven. Devo confessar, neste momento, que quase fiquei hipnotizado pela música.

Recuperado do quase transe, dirigi-me ao quarto aonde eu sabia que Leonildo estaria escrevendo. A porta estava aberta, e uma estranha luz violeta saía de dentro do aposento. A música que eu ouvi na sala estava agora em alto volume. Aproximei-me em passos leves, tomando cuidado para não chamar qualquer atenção. Quando cheguei à porta, fui tomado pelo pavor ao ver meu velho e pobre amigo sentado em sua cadeira, digitando alucinadamente no teclado. O ritmo lembrava mais um pianista executando uma obra de Chopin do que um escritor que trabalha as palavras. O mais estranho, se é que isso é possível, não era a velocidade com a qual ele digitava, e sim a sua cabeça, que dançava acompanhando a nefasta música, pendendo para esquerda, direita. Olhar o fundo de seus olhos foi o maior erro que cometi em minha vida. Ao invés de um olho comum, com íris, retina, todo o que havia era uma imensidão azul-esverdeada que parecia mudar de cor acompanhado os graves da música.

Por um tempo, minha presença não foi notada, mas logo ele me viu – ou me ouviu, pois duvido que aqueles olhos fossem capazes de ver qualquer coisa – me chamou, implorando por socorro. Sua voz emanava desespero, um pedido de um moribundo, eu diria. Ao entrar no quarto, senti uma estranha presença, mas não era capaz de ver nada. Senti alguma coisa roçando em minhas pernas, braços, e eventualmente, em minha barriga. Tomado pelo medo, aproximei-me de meu amigo na esperança de tirá-lo dali. Foi inútil, ele parecia pesar toneladas, e seus dedos pareciam magneticamente atraídos para o teclado. Cheguei perto de seu rosto ao vê-lo balbuciando algumas palavras:
– Na minha gaveta... por favor... isso precisa parar...
Abri a gaveta e encontrei um revólver, carregado. Olhei para ele, que suava e tinha sua pele definhada. Eu não tinha certeza do que fazer, mas aqueles olhos, por um momento, pareceram suplicar a ajuda que o libertaria. Não pensei duas vezes – e hoje me pergunto se tomei a decisão correta – e disparei contra sua cabeça. Sangue e miolos atravessaram a parede na mesma hora em que ouvi um grito que torceu a espinha e fez meu cérebro rodopiar duas vezes. A música cessou, e meu amigo, estranhamente, tinha um enorme sorriso em seu rosto.

Hoje, sete anos após este bizarro incidente, ainda ouço aquela estranha música à noite, enquanto meu quarto assume uma estranha coloração violeta. Tenho escrito, algo que jamais imaginei fazer em toda a minha vida, e estou perto de assinar um contrato de publicação com uma grande editora. Não saio mais de casa – não por vontade própria, as portas e janelas, simplesmente, não abrem. A arma usada para libertar Leonildo, que eu tinha certeza que estava comigo, misteriosamente sumiu. Ao contrário de Leonildo, porém, eu não tenho ninguém que possa me visitar enquanto eu estiver escrevendo.


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O AVEJÃO

Luciano Barreto





O local não fora escolhido a esmo. A escolha havia sido feita há dois dias. O ancião passou direto pela recepção e subiu as escadas. Movia-se lentamente. A perna direita, mirrada que era, fazia-o claudicar. O homem parecia estar resignado com sua incapacidade física. Mas seu rosto denotava um sofrimento contido, reprimido. Entrara na pensão mais imunda que achara. Não era falta de dinheiro. Era falta de coragem. O quarto era miserável; exatamente o que procurava. Achara, há dois dias, o que procurava há semanas. Nem tocara no interruptor de luz. Queria habitar a escuridão.

Havia acendido uma vela e, sofregamente, arrastado a mesa para perto de uma janela. Sentara e pensara em escrever uma missiva que explicasse todo o ocorrido; a explicação do médico sobre o câncer de pulmão; as reduzidas chances de cura, as hediondas dores oriundas do tumor maligno, enfim... relatar os pormenores. Mas havia se detido no destinatário. “Quem seria o destinatário?” – ele falara com voz rouquenha enquanto equilibrava o cigarro nos lábios murchos.

Abandou tudo e regressou à rua. Ganhou a noite. Iria pensar em alguém. Antes, porém, colocara algumas folhas sob o rústico castiçal, na velha mesa. Precisaria da ínfima iluminação de uma vela para relatar os fatos. Assim, os transeuntes do corredor e da rua não desconfiariam de nada.

(...)


Quando retornou ao quarto, viu a mesa que deixara antes de sair, a forma trapezoidal que ainda suportava a delgada vela, a única luz viva no cômodo. A cera quente já havia gotejado algumas vezes no papel. O resto era somente o mais escuro dos breus. À luz da vela seria melhor, mais assustador para outrem. O impacto visual seria ótimo.

Regressara com um destinatário em mente. Poderia ser o tetraplégico que vira sendo carregado numa cadeira especial por um auxiliar de enfermagem. Havia feito amizade com Julius, o auxiliar. Então soubera que o doente chamava-se Alex e vivia em companhia de uma irmã e um cunhado. Poderia ser o próprio auxiliar de enfermagem, Julius. Poderia ser o recepcionista que traficava maconha e cocaína na recepção da lúgubre pensão, na calada da noite. Poderia ser qualquer um. Então, o destinatário seria: “Ao primeiro chegar”.

O velho Elliot permanecera parado, junto à mesa, por muitos minutos. Achou deveras estranho ainda não ter sentido as terríveis dores no estômago. As dores que, com certeza, precederiam o óbito. Caminhou na escuridão como um ser fantasmagórico. Subitamente, percebeu que não mancava mais.

Sentiu-se rejuvenescido. Tentou segurar a caneta e deixar os detalhes de seu sofrimento registrados, mas sua mão trespassara a antiga mesa. Um vento soprou e as folhas farfalharam sob a candeia. Sombras zombeteiras bailaram ao fundo. Em vão, quis agarrar a candeia que suportava a vela para iluminar a janela e ver a origem daquele minuano, já que a noite estava parada sem nenhuma corrente de ar. Sua mão também não conseguira segurar aquilo que iluminava debilmente o local.

Para sua completa incredulidade, percebera que atravessara a mesa como um espectro medonho. Era um avejão atormentado pela consciência imorredoura que não se esvaiu com a extinção de seu corpo físico.

Na malograda réstia de luz da vela, viu seu corpo estirado no chão. Os cabelos espalhados no solo carcomido por cupins. As mãos crispadas em razão da pungente dor que o arsênico trouxera minutos após sua ingestão.

Depois, com a boca aberta e as mãos espalmadas, recuou de horror. Algo tão anoso como o próprio mundo ofereceu-se pela quadrática janela. Os sons de ossos contra ossos foram ouvidos pelo espírito do velho Elliot. A bruma assustadora chegou rápida e decidida. Um sem-número de rostos antigos vieram apensados à nuvem fantasmagórica. Elliot, o avejão, tentou precipitar-se pela porta. Mas foi acossado pelo inesperado visitante.

Quando se virou, viu uma massa informe extorquindo-o paulatinamente pela perna direita que outrora era mirrada.



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A REMIÇÃO DAS DÍVIDAS

Obed De Faria Júnior





Amador puxou da estante uma das grossas brochuras que, já fazia anos, lá ficavam enfileiradas. Em suas bordas podia-se ler com letras cuidadosamente desenhadas em destaque o fim a que cada um dos volumes destinava-se: “Dívidas em Aberto”, “Dívidas Quitadas” e “Remição por Morte”.

Era ele um velho usurário, que, ao longo de décadas, enriquecera às custas da exploração dos menos favorecidos. Controlava cada centavo apontando, dia após dia, os movimentos de recursos e a evolução dos juros, que de forma vertiginosa eram acrescidos, linha a linha. As dívidas em curso eram as que, obviamente, encontravam-se ativas e orientavam as ostensivas cobranças feitas rotineiramente perante os incautos devedores. Aquelas que, enfim, conseguiram ser quitadas, certamente o foram com o sacrifício do trabalho, das economias ou do patrimônio de alguém.

A despeito dos rígidos termos firmados por cada um dos devedores, quando da tomada de empréstimos, a cláusula que estipulava que em caso de morte o saldo deveria ser honrado pelos sucessores raramente era respeitada. Afinal, com a morte de um devedor, em face dos juros extorsivos praticados naquelas operações, muito pouco restava a seus herdeiros que não um cenário de devastação e ruína familiares e, assim, de pouco adiantava exigir a liquidação dos débitos deixados pelos recém-defuntos. Nesses casos, havia a chamada “remição por morte”, quando o saldo era simplesmente posto de lado pela inviabilidade de sua cobrança.

Ou seja, jamais havia o perdão de dívidas, mesmo diante da fatalidade do óbito de algum devedor. As suspensões dos débitos davam-se por absoluta falta de condições de serem cobrados. Mesmo assim, ele transferia as anotações para aquele volume de seus registros porque, dessa forma, contabilizava os montantes que deixara de receber na esperança de que, eventualmente, algum dia pudessem ser ressuscitados perante algum herdeiro que lograsse recuperar-se na vida. Porém, mesmo que isso jamais viesse a ocorrer, invariavelmente o usurário já havia se apossado de tantas vantagens do devedor, quando ainda vivo, que não era comum apurar-se algum prejuízo de fato.

Naquela noite, o avarento ancião estava justamente transpondo para os registros de “Remição por Morte” os saldos de Aníbal Furtado, um pequeno comerciante que falecera na tarde daquele dia. Enquanto rabiscava os números nas folhas já amarrotadas de tanto manuseio ao longo de anos, ficava imaginando se deveria ou não procurar a família em busca do que era “seu”. Assim, enquanto matutava de olhos fechados, por instantes pendeu a cabeça à frente, como que num cochilo repentino.

Ele, contudo, reabriu os olhos ao notar no solitário e vetusto recinto de seu quarto um gemido dolente. Por alguns instantes demorou a localizar a origem do lamento, até que, num canto atrás da cama vislumbrou o vulto do comerciante cuja morte lhe fora noticiada há pouco. Apavorado, pensou consigo mesmo: “Mas que coisa! Agora estou a ver fantasmas em minha casa!!!”

– Vai-te daqui, alma penada! – esbravejou tentando espantar a aparição.

– Não! Não posso... – respondeu o choroso espectro – Daqui só saio quando tomares registro em teu livro de todo mal que me causaste em vida e, ainda, após sofreres todas as dores e angústias que me impuseste com tua cruel avareza. Daqui não arredo pé até que tenhas expiado tudo quanto me propiciaste de desespero e miséria.

– Estás a falar bobagens, criatura do além – retrucou Amador – Vai-te ao inferno que por lá devem estar te esperando. Que tenho eu a ver com tuas desgraças pessoais? Vieste me procurar em busca de socorro financeiro e eu assim o concedi. Que mais poderia fazer, a não ser cobrar-te pelo favor que te prestei? – emendou com ares de santidade.

– Favor?! Favor?! – ironizou a alma de Aníbal – Os juros que me impuseste cada vez de forma mais aguda levaram-me à ruína. Meu negócio faliu e minha família foi deixada na miséria. E nada disso te tocou e sempre me exigiste mais e mais. Eu mesmo deixei a vida terrena por falta de condições para um tratamento médico decente.

¬ Pois bem! Estou cá, justamente, anotando tua dívida como remida. Nada mais será exigido de teus herdeiros.

Nesse instante, um cheiro de enxofre invadiu o cômodo. Por detrás de uma nuvem de fumaça surgiu macabra e chifruda figura que lançou furiosos olhos vermelhos sobre Amador.

– Cala-te, desgraçado! – disse o demoníaco ser ao velho assustado – Obedece ao que te comandou a alma infeliz que para cá encaminhei.

– Ora! Isso só pode ser um pesadelo. Devo ter adormecido enquanto escrevia e, daqui a pouco, hei de despertar desta insana e ridícula situação – desdenhou Amador.

– Tu não adormeceste, oh boçal criatura – redarguiu a diabólica entidade - Morreste sentado contando tua riqueza. A mim cabe impor-te uma pena que possa compensar todo mal que fizeste aos teus semelhantes com tua avareza e cupidez.

– E... – De repente, Amador ficou sem fala.

– Foi como explicou-te Aníbal: tu irás anotar em teu livro cada uma das terríveis angústias e tristes vicissitudes que lhe causaste. Irás sofrer em teu coração os mesmos desesperos e assim, quando tiveres colhido todo o relato, talvez teus pecados sejam tidos por expiados e eu não te mande diretamente para queimar nas profundas.

Ainda atônito e sem saber ao certo como reagir a tudo aquilo, Amador acabou por acatar o que lhe fora dito e, assim, começou a anotar naquele mesmo livro cada palavra que Aníbal lhe ditava. Ficou ali, por horas a fio, escrevendo e chorando, contorcendo-se por dentro a cada relato condoído que o espírito expunha, decorrência das mazelas causadas pela ruína que lhe fora imposta pelo usurário.

Findas aquelas horas de tortura, Aníbal deu sua narrativa por concluída e, da mesma forma repentina como surgira, evaporou em pleno ar. Aliviado, Amador conclamou o sombrio verdugo que lhe havia imposto aquela pena, para cobrar a quitação de sua própria dívida, como lhe fora prometido.

– Estás a me chamar? – vociferou a horrenda criatura, surgindo novamente de inopino.

– Já terminei minha tarefa. Agora, libera-me desta angústia que ficou impregnada em meu peito – suplicou Amador.

– Tu estás longe, muito longe, de ver teu castigo cumprido. Toma teus livros e folheia-os. Vê cada um dos nomes que anotaste ao longo das décadas em que enriqueceste, oh infeliz!

Nesse ponto, começaram a adentrar, às dezenas, as almas de todos aqueles que haviam padecido sob as cruéis condições impostas por Amador ao longo do tempo.

– Estes são os espíritos de teus devedores que já morreram. Ainda há os que deixaste para trás em vida. Algum dia, também irão passar para o lado dos mortos. Quando terminares de transcrever nesses teus livros o relato do último e, assim, tiveres derramado a derradeira lágrima em paga das que causaste, volta a me convocar... Daí, só então, tornarei a pensar no teu caso!


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O PACTO MACABRO DA VELHA "ANTONHA"

Afonso Luiz Pereira



O caboclo Bentinho era homem de coragem. Ah, era sim! Não havia vivente, neste mundão de meu Deus, que botasse dúvida de sua macheza na frente das fuças dele. Não senhor! E matador também! Sim! Pois não se criava encrenca braba que o cabra da peste não resolvesse na ponta da faca, que vivia de levar amarrada no cordão da cintura. Nas suas costas já se botava por riba uma boa dezena de desafetos que ele tinha mandado desta pra melhor. A fama do homem corria longe! Muito além das terras que faziam fronteira com a pequena cidade de Itaúba, aonde ele morava, no meio do sertão agreste, contavam-se os causos de sua valentia. Era assim o caboclo Bentinho: não tinha medo nem de homem, nem de bicho e, dizia-se “inté”, tampouco de assombração!

Bentinho e o folclore em torno de sua figura só tinham rival em outro sertanejo de igual fama conhecido como “Tonhão dos Espíritos”. Deste, então, pouco se sabia a não ser que tinha parte com o Demo, o Capeta, o Coisa Ruim! Vivia isolado numa casinha esturricada, feita de madeira velha e escura, sempre vestido de paletó e calça marrom surrados pela poeira acachapante dos ventos que esmerilhavam os elementos naturais da caatinga. Mas não era Tonhão um capiau qualquer. Não senhor! Era homem versado nas letras dos cafundós dos infernos porque a criatura falava com gente morta através dos papéis. Ô se isso lá era coisa de gente certa!

Um dia, diz que a mãe de Bentinho, de quem o “maledito” puxou a ruindade, bateu a “caçuleta” sem aviso, de supetão, coisa de coração cansado que pede sossego pelo avanço da idade! Da boca do povo corria o cochicho que a velha já ia tarde. Ninguém gostava dela porque a cobra coral carecia de freios na língua e falava mal de todo mundo. Ela “derriçava” o cacete nos animais e nos empregados da fazenda fácil, fácil, assim, sabe, como quem joga lavagem pra porco. O baque da morte da “santa” mãezinha pro coitado do Bentinho foi grande. Ah, se foi! Ficou o homem inconformado de um tal jeito que, mal o corpo da defunta tomou gosto dos bichos da terra, veio ele ter comigo antes da lua fazer assento naquela fatídica noite, cheia de acontecimentos, que ainda me acompanham por onde vou neste sertão sem porteira.

— Vadico, quero que vosmecê me leve inté no cafua do Tonhão dos “Espríto”.

— Oxênte homi! Vosmecê tá de miolo mole, é? Abilolou de vez? Aquilo lá tem parte com o cão!

— Arre égua, deixe de sê abestado, homi! E eu lá tenho medo de lidá com criatura bisonha feito ele? Minha santa mãezinha finou-se num repente. Não deu tempo de nada, visse? Não chegou a dá o último suspiro, a pobre coitada! É capaz que ela teja percisada de alguma coisa lá do outro lado, né? Diz que o Tonhão é de falá com quem bate a “caçuleta”! Pois então?

— O meu padim padi Ciço! Lá vou não! Cruz credo!

— Deixe de sê cagão homi! Diz que vosmecê é dos “pouco” que conhece o caminho inté lá. Se vosmecê não vai, vosmecê tá me fazendo uma desfeita! E homi, mesmo sendo amigo meu, que me faz uma desfeita, eu deito a faca no “gorgomio” sem dó nem piedade!

Pois, então, foi assim que Bentinho me deu o convencimento de ir ele mais eu, cada qual encarapitado no seu jegue pachorrento, pras profundas da caatinga, em noite escura que nem carvão. Depois de umas tantas horas, já de destino certo e, enveredando por trilhas e atalhos, num sobe e desce da cachorra, calhou a gente de ver, ao longe, a moradia do “malacabado” filho do Tinhoso. A luz tremelicante de vela a mercê do vento, que se escapava das gretas das paredes pregueadas do casebre, batia nos olhos da gente como uma parecença de farol maligno dentro do negrume da noite! Eita visão “dos inferno”! A vontade que me deu era “carcá” dali rapidinho que nem calango que foge de caboclo morto de fome. Olhei pra “peixeira” escorrida no lado do Bentinho e desisti do pensamento.

Mal invadimos a mangueira do casebre sombrio, Bentinho não contou passo. Desmontou do seu jumento raquítico e mandou pernas na direção da porta de entrada do cafua do Tonhão! Não chamou o vivente pelo nome, tampouco bateu palmas pra se fazer anunciar. Empurrou a entrada do batente e mergulhou lá dentro, emproado, que nem galo quando faz presença pra galinha nova! E eu, na cola dele, fui junto, não com a mesma empáfia porque sou criatura de paz, temente a nosso senhor Jesus Cristo!

Lá estava o Tonhão bem do aboletado atrás da velha mesa de carvalho!

Cruz credo! Não conhecia o cabra de presença porque dele só ouvira falar “estórias”! E, de fato, como se dizia nas conversas, o homem mais parecia um cão chupando manga de tão feio. O ambiente funesto do cômodo escuro, a vela de chama tremeluzente próxima dele, mais as folhas de papéis em desalinho, por todos os lados, não lhe faziam melhor a figura. De começo, após nossa entrada de supetão, ele não nos deu atenção, ou fez que não viu, não sei dizer. Bentinho tomou aquilo como uma afronta. O porquêra pigarreou forçando o barulho de engasgamento de quem puxa catarro pra limpar o “gorgomio” e cuspiu no chão de madeira tosca da sala. Os olhos negros, da cara amassada e empalamada de Tonhão, que estavam de pouso nos papéis por cima da mesa, tomaram prumo e buscaram nossa direção. Só da mirada que o caboclo me deu veio um sopro de frio forte que me arrepiou todo o corpo, dos pés a cabeça!

Bentinho não tomou tento de apresentar-se e foi logo intimando:

— Tonhão, comi muita poeira nestas estradas pra mode de vosmecê me dizê cumé que tá a minha santa mãezinha que bateu a “caçuleta” não faz nem cinco dias! Quero sabê se a pobre tá percisada de alguma coisa?

A vosmecê que me ouve, não sei direito como explicar o acontecido. Tenho pra mim que Tonhão já devia de tá de conluio com o Sacripanta, em meio d'algum tipo de ritual, porque assim que Bentinho deu intimação, ele começou a rabiscar a folha de papel num apressamento desatinado, os olhos se fugiram pra não sei d'onde e, por pouco não me borrei nas calças, quando ouvi a voz espremida e roufenha, da velha Antonha, mãe de Bentinho, saindo da boca da criatura molambenta!

— Fio... meu fio... Bentinho... meu menino... Eu já tava te esperando! Tô nas profunda dos inferno e não tô gostando nadica de nada desse diacho de lugar! Vosmecê tem que me tirá daqui, meu fio!

— Oxênte, mas como mãezinha?

— Meu fio, meu menino, já fiz um “combinado” aqui com o Belzebu, só que vosmecê tem que me ajudá!

Naquele exato momento Tonhão do Espíritos começou a se estrebuchar. Vixe Maria, mãe do céu! O homem ficou feio! As mãos que bolinavam o papel pareciam querer abandonar o serviço da escrita exigido pelo “Bode Preto”. Deu dentro das minhas idéias, assim, sabe, no meu jeito de pensar que o traquinas “malacabado” tava num esforço “pra mode” de se livrar do encosto maligno... mas não tava conseguindo, não! Daí, vosmecê que me dá ouvidos nessa minha contação do fato “assucedido”, vai bota dúvida no que eu vou te contar agora. Mas te adianto que não sou cabra dado a mentiras e nem invencionices, não! Pode acreditar! Por riba da cabeça do Tonhão começou a se formar uma nuvem empanturrada, meio “escurecente”, tal qual se “assucede” no começo das tempestades brabas, quando no raro, acontecem por aqui! E dentro da sala, veja vosmecê! É isso mesmo! Uma nuvem dentro da sala, homem do céu! Vosmecê acredita nisso? Mas espere que o pior mesmo vem por aí. De dentro da nuvem começou aparecer um mundaréu de criaturas medonhas que, decerto, vinham das profundas. Um arrepio me cutucou forte a espinha de baixo pra cima que nem choque elétrico!

Nossa Senhora dos Desvalidos, Tonhão tinha aberto a porteira dos infernos!

As criaturas bisonhas se misturavam as carnes ou estavam ligadas umas nas outras, homens, mulheres, morcegos, esqueletos humanos, bichos que não dei conta de atinar, todos mal formados, um por riba do outro, o outro por riba de um. Olha, era uma misturança que fazia “inté” mal pros olhos do vivente. Nunca vi daquilo, nem em pesadelo se vosmecê quer saber. E no meio daquele mafuá das profundas, entre almas e demônios, num é que apareceu as fuças da velha Antonha, estampada no bucho do Bode Preto. Vixe Maria, mãe do céu! Foi nessa hora que, por pouco, quase arriei os intestinos ali mesmo! Quis me escafeder dentro do pretume da noite, mas meus gambitos fizeram birra! De lá de riba a cobra coral mandou recado pra Bentinho botando minhoca na cachola dele.

— Fio, o Belzebu me aprometeu que se vosmecê sangrá, esfolá, matá de morte bem matada, pra mais de 30 cabras, ele vai me devolvê pra vida de novo! Olhe só, meu fio! O gramuião me faz vivê de novo! Ele bota minha alma no corpo outra vez!

— Maezinha, a senhora tem certeza?

— Oxênte, se não tenho! E tem de sê pra ontem, meu fio. Pode começá com o Tonhão aí, esse fio duma égua parideira, que não tá fazendo gosto d'eu proseá com vosmecê, fio. Mata ele! Mata! Cutuca a peixeira velha no bucho desse empalamado! Mata ele!

Não deu tempo de nada! Foi como o pensamento! Bentinho, esporeado que nem galo de briga, correu com a peixeira na mão mergulhando por cima da mesa e, num corte de banda, sangrou o “gorgomio” do Tonhão dos Espírito que, emborcou de cabeça, virado de pernas pro ar, o desenfeliz. Bentinho não parou o serviço encomendado, não! O sangue velho espirrou pra tudo quanto foi canto. Eu vi! Vi sim! Vi com os olhos que esta terra há de comer! Enquanto Bentinho golpeava o corpo estrebuchado do outro estatelado no chão, lá de riba, dentro da nuvem, as criaturas dos infernos se agitavam e se moviam que nem um amontoado de cobras ao redor do Tinhoso que levava a cara da velha Antonha pregueada no bucho. Ela se ria alto, feliz, que nem passarinho preso que foge da gaiola, a desgramada. E, de repente, os olhos negros dela caíram por riba de mim. Ai, ai, meu Senhor Jesus Cristo. Senti que a coisa ia ficar mais preta ainda! Um sorriso murcho da boca chupada da velha me estremeceu o prumo e quase desmaiei!

— Bentinho, meu fio! Esse aí já se foi. Larga dele! A alma já desencarnou e tá vindo pra cá! Agora, pega aquele estrupício lá, ó. Vadico é fuxiquero! Estripa esse desgramado, fio d'uma porca, tumém!

Daí pra diante pouca coisa posso dizer. Não sei o que foi que deu no meu amigo Bentinho, meu compadre, meu parceiro de traquinagens da infância. Ele se levantou num pulo e virou-se pra mim. Não disse palavra, mas os olhos dele diziam: vosmecê vai morrer cabra! Eu que não sou bobo nem nada, não pedi explicação, nem misericórdia. Não senhor! Tomei o vão da porta escancarada pra noite e deitei cabelo pra fora do casebre do Tonhão! Deixei o meu jegue na mangueira e “garrei” o mato da caatinga, sem olhar pra trás. Enquanto corria desesperado, caindo e levantando, ainda podia ouvir o riso da velha Antonha azucrinado os meus ouvidos.

Ninguém, que sobreviveu àquela noite, esquece da tragédia. Não se comenta, mas ninguém esquece. Corri até a cidade. Fiz o maior barulhão que já se tinha visto na história daquele povo. Eu berrava alucinado, nas ruas empoeiradas de Itaúba, que Bentinho vinha “estripá” gente de bem pra resgatar a velha Antonha dos infernos. Muitos fugiram, outros não acreditaram e um grupo se armou de facas e armas de fogo pra esperar o “maledito” nos limites fronteiriços da cidade que levavam ao casebre de Tonhão. Foi assim que vimos o Bentinho, acompanhado da velha Antonha, desenterrada, apodrecida e amarrada no meu jegue. Quando ele desmontou do seu quadrúpede, a faca rombuda e os olhos do cabra tomaram brilho dentro da noite. Não fizemos muxoxo. Começamos a atirar! Os animais de carga e a velha desempacotaram-se no chão, mas Bentinho, não! O homem tava de corpo fechado pelo Capeta de uma tal maneira que nem bala entrava na carcaça do vivente! Ele berrou e correu pra cima de “nóis”. Eita que foi um Deus nos acuda, um desespero sem tamanho! Era gente espalhada correndo pra tudo quanto era canto! Quem corresse mais chorava menos porque Bentinho ia passando a faca em todo mundo. Era no pescoço, nas costas, nos braços, nas pernas... vixe, foi uma gritaria que se ouviu de longe, que serviu de aviso para quem estivesse na cidade que tratasse de tomar providência de arrumar as trouxas e picar a mula! Na confusão, o caboclo que Bentinho não lanhava uma boa ferida pro resto da vida, morria estrebuchado, segurando as tripas no meio da caatinga. Olha esta cicatriz aqui nas minhas fuças. Não nasci zarolho, não! Foi ele que fez!

Bem... vou dar o “causo” por terminado porque não tenho mais o que dizer. Esta “estória” que eu te contei já vai há muito, sabe? Jamais voltei a botar os pés lá pras bandas de Itaúba, mas estou bem informado do que acontece naquele “eitão” de terra! É verdade! O Belzebu, o Demo, o Coisa Ruim, o Bode Preto, faz questão de me deixar inteirado a quantas anda o combinado dele com a cobra coral. Em algumas noites, escuras que nem carvão, me bate um encosto maligno, fico em transe, assustando os meus amigos, meus filhos e parentes. Nestas horas, sou tomado pelo sentimento de desespero de alguém, vítima de Bentinho, que não conhecendo a região, acaba estripado e abandonado pra morrer sozinho dentro da noite, em meio a caatinga. Então, vejo claramente, pelos olhos do agonizado que se esvai em sangue, o casebre isolado e lá no vão da porta, alumiada pelas velas tremeluzentes, alcanço com a vista boa, escorada no batente, a figura apodrecida da velha Antonha sorrindo seu sorriso mucho e me dizendo:

— Falta pouco Vadico! Falta pouco!


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O QUADRO

Tânia Souza





O barulho da bola estourando se espalhou na sala. Adoro goma de mascar. A tosse sacudiu o peito do velho sentado na poltrona, o peito chiava enquanto eu apenas observava o corpo carcomido pela idade estremecer. Após alguns minutos, a sua mão magra estendeu-se e me chamou: Quantos anos minha filha? A velha pergunta. Vinte, respondi sabendo que meus olhos desmentiriam, mas isso de fato não importava, nunca importa para eles. Mais uma vez me estendeu a mão. Meu chiclete ainda estava doce quando grudei na mesa de mogno ao seu lado e sorri, o sorriso é fundamental para gerar a confiança. Cheguei perto do homem e senti o cheiro dos antibióticos, primeiro a grana vovô... O velho também riu, mas a tosse mais uma vez o sacudiu todo, quando apontou para um envelope sobre a mesa. Peguei sem conferir. A sala estava escura, apenas algumas velas iluminavam o lugar. É bonito aqui, você vive sozinho?, perguntei, enquanto meus saltos plataformas ecoavam no assoalho amadeirado e eu sujava meus dedos nos livros acumulados de poeira. Não te chamei para conversar menina, venha cá, mais uma vez o peito chiou ameaçadoramente. Quanta velharia! Era chegada a hora e, sorrindo, me aproximei do velho. Calma vovô, dei uma risada que perdeu-se nas sombras e nos acessos de tosses que de vez em quando interrompiam o silêncio... Passaram-se algumas horas, na parede, um relógio antigo avisava que a madrugava se anunciava quando fui para os fundos da casa.

Diogo estava parado em frente à parede, um quadro maldito, Christine. O maior tesouro desse cofre é um quadro bizarro... Diogo era bonito, os cabelos levemente grisalhos, o ar de respeito que muitas vezes me salvara. Um advogado decadente, cujos conhecimentos me fizeram a herdeira de milhões. O quadro é realmente bizarro, horripilante seria o termo correto para ele. A primeira vez que senti sua força insana foi quando a moça da galeria veio para avaliação. Ficou parada em frente ao quadro, parecendo hipnotizada, quando me olhou, seus olhos revelavam certo asco, não, não servia para a galeria. A polícia ficou intrigada com a sua morte, mas a presença de duas testemunhas e do exame do corpo revelou que fora apenas acidente, ela tropeçou na dobra do tapete e bateu com a cabeça na mesa, o sangue jorrou ate ser absorvido pelo assoalho amadeirado. Quando os médicos chegaram ela já estava morta. O fato de eu ser apenas uma jovem herdeira, órfã no mundo ajudou a eliminar qualquer suspeitas. Na minha nova situação, o que mais me agrada é o olhar penalizado dos que me cercam. Pobrezinha, sozinha agora. A neta que ele tanto procurou foi encontrada.

Eu? Eu sou a pobre menina rica, a papelada encontrada no cofre pelos advogados quando o velho morreu de um infarto fulminante, revelou que finalmente ele havia encontrado a neta perdida. Pobre homem, noticiaram os jornais, morrera sem conhecer a neta. Pobre menina, dizem de mim, órfã e milionária, disfarçando a inveja no olhar. Sozinha no mundo. Mas não estou só, Diego está comigo, sua devoção me enerva, mas tem sido útil tê-lo a meu lado. O quadro está exposto na sala, por alguma razão pérfida, eu o quis ali, onde posso vê-lo. Há boatos sobre sua origem, os curadores não encontraram registro sobre o pintor. Agora está na nossa casa, evito ficar sozinha com ele, mas constantemente, quando enfim desperto de um longo sonho, me vejo parada perante o quadro, sentindo minhas forças sumirem e só penso em dormir...

...


Ah, horror horror... O quadro é maldito, cada vez mais Christine se distancia de mim. Um quadro bizarro! O maior tesouro do velho era apenas um bizarro quadro, exposto na parte mais escura do cofre, de forma tal escondido que quase não o vi. Mas o que sei eu? Acaso sou critico de arte? Apenas sei que as mais horrendas são as que mais valem e assim devia ser com estes traços mórbidos que algum artista encharcado de alucinógenos pintou numa noite maldita. Ah, se eu soubesse o que hoje sei. Só sei que meus olhos tremeram quando cheguei bem perto daquela coisa. Talvez a loucura já estivesse comigo naquela noite, quando senti os olhos fixos do homem sentado na velha cadeira parecendo sugar meus sentidos. Vai ficar a vida inteira admirando essa coisa? A voz áspera de Christine me despertou. Ah, Christine, por ela eu me perdi para sempre e, se mais uma vez me pedisse, eu me perderia. Estávamos naquela noite, no cofre da mansão dos De Alvarez, escondi meu ciúme quando a vi entrando, mas rezava para todos os santos que fosse a última vez. Vi quando acrescentou mais um envelope no meio dos documentos amarelados, enquanto eu escondia dentro da camisa uma caixa contendo algumas jóias, este foi meu erro maior, nada deveria ter sido tocado, nada deveria ter sido movido. Jamais deveríamos ter ido. Ah, Christine... Temo por sua saúde, por horas a vejo sentada na mesma poltrona onde o velho morreu, os olhos fixos na pintura.

...


Não sou a neta verdadeira. O nome dela era Anna Julia, deve ter morrido naquela pequena casa na fronteira, onde cada copo d’água custava-nos serviços infames, a casa onde conheci sua história, da mãe enlouquecida que fugira da família rica. Um dia, ela dizia, um dia eu verei minha verdadeira família. Quando fiz 16 anos eu fugi, trazendo a certidão de Anna Julia e um nome que nunca tivera. Encontrar o velho patife e convencer Diego a forjar a minha identidade foi fácil. Apenas o velho não queria a neta, não se interessava, por isso eu fui até ele, por isso o matei. E herdei toda a sua fortuna, esta casa decrépita e... O quadro. Na pintura, um homem sorri, escrevendo cartas numa escrivaninha de mogno, sei que a um olhar mais atento o sorriso é na verdade uma careta de dor. Alguns vultos parecem entrar pela janela, junto à neblina. As cores são doentias, um tom escuro, um verde nauseante predomina; não sei, porém sinto meu peito apertar-se quando vejo o quadro, os olhos do homem parecem seguir-nos por todo lado. O testamento diz que não pode ser vendido, a despeito do valor, deve ser conservado ou doado. Mas ninguém o quer. Desde que o vejo escrevendo, sinto uma necessidade incontrolável de também escrever, este caderno serve para registrar minha história, mas temo que seja encontrado, por isso o guardo comigo para onde vou. Diogo também escreve, vejo como se concentra enquanto os olhos parecem vagar pelo escritório.

Os olhos do homem me seguem, Diego riu, dizendo que era remorso, mas jamais conheci o significado dessa palavra, posso sentir quando entro na sala, os olhos enfermiços das criaturas me seguindo, por onde vou eles me perseguem. Mencionei as criaturas? Sim, a neblina da pintura se desvanece a cada dia, revelando seres monstruosos, primeiros foram os olhos, depois, ah depois...


...



Christine gritou por mim esta tarde, sua face estava pálida e me disse que o quadro estava mudando. Olhei horrorizado e o que antes eram apenas névoas ganharam contornos horripilantes, bestiais, uma massa disforme onde homens e feras tomam formas nas brumas, contorcendo-se em dor e angústia, lançando-nos olhares ameaçadores. Nunca tive fé, mas se há um Deus, clamei por ele vendo aquela monstruosidade. Temo estar sendo influenciado por Christine, seria este um plano para me enlouquecer? No entanto, vejo que está bastante perturbada a minha menina. Gritou para que fosse embora e a deixasse. Não quer mais sair e sinto o cheiro de remédiosna sua pele, entretanto, ela nega que os esteja usando, ao contrário, constantemente me acusa de estar viciado em antibióticos. Dois meses após a primeira, tivemos a segunda morte diante do quadro, a copeira sofreu um ataque epilético enquanto limpava a sala, da queda fulminante não mais se levantou, os contornos do quadro tornaram-se mais vividos, os rostos mais definidos, bestas feras... No entanto, Christine não deseja desfazer-se da obra. Sente um estranho prazer em fitar a pintura obscena.


...



Quantos anos minha filha? A voz ecoa e o chiado insuportável parece invadir tudo, não suporto mais os seus olhos cravados em mim. Quantos anos minha filha?, e o cheiro do antibiótico inundou a casa enquanto ouço seu peito miserável chiando... Por onde vou, os olhos malditos me seguem enquanto os monstros entram pela janela e gritam, me amaldiçoando. O quadro, o maldito quadro. A marchand disse que é apenas uma técnica, ilusão de ótica, mas eu sei que as imagens se contorcem e se fundem de forma desesperadora, os gemidos não me deixam dormir e os olhos das criaturas me seguem. Sinto o cheiro dos remédios misturados a uma podridão inominável. Diogo me olha e sei que esconde algo, o quadro me disse, sussurrou para mim enquanto tossia, que eu deveria vigiar os passos do meu amante. Hoje, quando ele saiu, fui ao seu quarto. Encontrei as jóias, a sombra do velho me guiou até elas, escondidas embaixo do colchão. Ah, tolo, tentando me enganar. Eu ri quando seu sangue espalhou-se pelo assoalho de madeira depois sumiu escorrendo pela parede ate a sala onde pendurei o quadro maldito. Chorei então, pois finalmente estava sozinha no meu pesadelo. Posso sentir os olhos de Diogo me seguindo pela casa, às vezes com ódio, às vezes com amor. Juro que o vi chorar certa noite, o corpo retorcendo-se em meio aos outros que entram pela janela do maldito quadro. Todas as noites eles chegam, chamando meu nome, dizendo palavras obscenas que ouvi nos tempos de outrora. Amaldiçoando meus dias pela eternidade.

É noite, o vento sacode as cortinas e acordo mais uma vez com o chiado do peito do velho, ele sussurra no meu ouvido e pede por sangue, sinto o corpo febril e já não posso dormir, meus dias tem sido essa velha poltrona, sinto a presença de Diogo no quadro, posso reconhecer a avaliadora do museu, a velha copeira, me olham angustiados em meio às bestas que aumentam em número e ferocidade a cada dia que passa. Devo apenas obedecer... A faca que encontrei na cozinha servirá aos meus propósitos, tudo que quero é poder dormir sem o cheiro nauseante dos medicamentos nem o chiado do peito enfermo ameaçando sufocar-me no leito.


...



O que leio nestas folhas coladas a minha frente e a lembrança do que vi ameaçam toda lógica, escrevo o que consigo entender das letras tremidas e evito pensar no que meus olhos testemunharam. Os corpos estavam espalhados pela casa, nem as crianças foram poupadas, muitos morreram dormindo, outros, encontrados nas posições mais estranhas. Não havia sangue, apenas o horror da morte.

A beleza da herdeira era conhecida por todos, no entanto, passara os últimos meses em reclusão total, até que a insanidade tornara-se incontrolável a ponto de levá-la ao assassinato de todos os empregados. Estava encolhida na velha poltrona, murmurando que eram ordens do quadro, que o velho a obrigava. Foi recolhida a um sanatório, onde uma camisa de força a segurava. Sempre que despertava, gritava por socorro, pedindo que o velho fosse embora. O caso fora arquivado até que seu sumiço repentino me levara de volta a velha mansão. As folhas espalhadas pela casa foram recolhidas por mim, colei todas elas e o que li revelou-me uma trama cruel e a insanidade que trouxera aos moradores. Não entendo como não foram encontradas antes nem penso nisso, apenas registro que leio, sinto uma necessidade absurda de transcrever estes acontecimentos inimagináveis. Aqui, nesta poltrona onde ela passou seus últimos dias, leio e transcrevo o registro de sua insanidade.

Entendo que a pintura os perturbassem, vi enfim o quadro a que se referem as folhas do diário quando abri a porta e um arrepio de horror tomou meu corpo, não pude conter um arquejo. Tal qual uma pintura em trompe l’oeil, as imagens parecem saltar e sair do quadro como num teto profano, uma massa de carnes, homens e feras em um escárnio de dor e ódio. Em meio a eles, vislumbro o rosto de Christine, a mais bela herdeira que esta cidade já vira, entrelaçada ao corpo de Diogo, juntos e amaldiçoados... Seus olhos me prendem e eu apenas escrevo...


...


Mais uma morte assolara a velha mansão dos De Álvares, desta vez, um jovem repórter que invadira o local durante a noite foi encontrado dias depois, enforcado na velha sala, a poltrona caída, os olhos arregalados e fixos na pintura que dominava o ambiente. Folhas de uma reportagem insana estavam espalhadas pela casa. Não há justificativas para seu suicídio, e as garatujas encontradas não esclarecem o assunto. Mais uma vez, os portões foram lacrados...


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LA SIGNO DE LA DEMONO

http://i4.ytimg.com/vi/SZ8QCSlc6Yw/default.jpg Leonardo Nunes Nunes




(Do Esperanto: O SINAL DO DEMÔNIO)

“E faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita, ou nas suas testas”
Apocalipse 13:16

Primeira Parte


A Delegacia


“Com meu cigarro no canto da boca, pus-me a criar mundos. Meus ídolos morreram, uns de câncer, outros por suicídio mesmo. Mas todos eles deixaram algo em comum nesta Terra: a criação. Eu só tenho medo de beber do vinho da morte sem antes deixar meu maior legado a Terra: O sonho cria vida.”

- Esse foi o recado suicida desse sujeito – falou Américo, capitão da polícia – Alguém consegue ler nas entrelinhas? – E olhou fundo nos olhos de cada um dos cinco policiais em sua sala, ouvindo o ressoar de uma respiração coletiva permitido pelo silêncio sepulcral em que a sala caíra momentaneamente – Eu não quero ser
o estraga-prazeres, mas não vou deixá-los ir sem antes descobrir o que o camarada quis dizer com esse bilhete. Alguém consegue decifrar o recado?

- Não exatamente – aventurou-se o primeiro policial, de nome Alessandro. Era conhecido na corporação como San, e assim era chamado sem a menor cerimônia – Mas... ele fala sobre uma obra, uma criação que não poderia faltar. A isso eu entendo que ele queria sentir-se útil.

- Útil?! – perguntou o segundo policial, Ronaldo – Não faz nenhum sentido. O sonho cria vida. Ora. Vamos até o presídio? – perguntou em tom de ironia – Lá encontraremos pessoas assim, tenho certeza. Suicida, isso já sabemos. Para que complicar as coisas? O que queremos saber se ele era ou não um escritor? Não fará a mínima diferença.

- Pois eu digo que sim – atravessou o terceiro policial chamado Ricardo – Não existe na literatura a criação de fórmulas, de vidas, de humano? Basta ler qualquer coisa, na internet inclusive, sobre os tais “Contos Fantásticos”. Sim, Ronaldo. Podemos ir pelo caminho mais fácil, é suicídio e pronto. Mas existem lacunas a serem preenchidas. Tenho certeza que com uma boa pesquisa podemos encontrar a resposta que procuramos.

- Pois eu concordo com Ronaldo – disse o quarto policial, Francisco. Francisco era mais conhecido por Chico, e já estava na corporação há mais tempo que os outros, sendo o mais velho da sala, incluindo o capitão, n’um total de cinco anos. Não era muito chegado à leitura, muito menos nesse ‘negócio’ de internet, de novidades dos anos dois mil. Não usava celular, e para encontrá-lo, somente através do telefone fixo; todos sabiam que seu telefone fixo era um aparelho tão ou mais antigo do que o aparelho telefônico da sala do capitão – Acho que não vamos encontrar nada nas histórias que ele escrevia. Agora, se vamos brincar de leitura, bem... não me responsabilizo pela perda de tempo. Temos que ser mais objetivos. Quando iniciei na carreira, o processo era menos rebuscado.



O quinto policial, que só absorvia o conteúdo da discussão, permanecia quieto. Seu nome era Cristiano, e era filho de um grande policial que morrera em acidente de carro certa feita enquanto perseguia um bandido que jamais foi preso. Para Cristiano, aquela conversa não estava levando a lugar algum. Discutir se deveriam levar em consideração as histórias que o suicida escrevia ou não, estava, para ele, fora de questão. Se o caso permitia essa investigação, não era contrário à tarefa, mas não fazia questão de fazer qualquer esforço a mais, sendo desnecessário. Gostava, sobretudo, de centrar forças n’um objetivo bem traçado. Para ele, era primordial um serviço bem executado. À moda antiga. Sem exibicionismo. Bem como absorvera o método do falecido pai.

- Capitão – interviu Cristiano – Não acho que vale a pena discutir se devemos ou não fazertal coisa. Se o caso permite, aliás, exige essa tarefa, vamos fazer e pontofinal – nesse momento olhou para cada um dos colegas na sala, e para o capitão também, a fim de constatar que todos prestavam atenção no que dizia – docontrário, para quê o esforço desnecessário?



O capitão levantou-se de sua cadeira e caminhou pela sala, enquanto todos permaneciam em seus lugares. O tapete fino que vinha da porta, bem como o chão da sala, estava muito limpo. A estante que carregava seus troféus de golfe, futebol sete e bocha, estava lustrosa. As gavetas, todas fechadas. Na parede atrás da sua
mesa, vários mapas, todos pendurados de forma organizada. Organizada também estava sua mesa, sobre a qual vários papéis repousavam, inclusive o bilhete do suicida. Falou dali mesmo:

- Meus amigos, esse é o bilhete que nos traz muita dor de cabeça. Está carregado de um sentimento profundo, além de um desespero também. Prato cheio para um psicanalista, que não faz muita diferença para nós, polícia. No entanto, a chave de todo esse mistério está contida nessas cinquenta e quatro palavras. É

difícil de acreditar, eu sei. Mas está ali. Sim, o sonho cria vida. E destrói também.
“Eu osconsidero os melhores da corporação. Os mais competentes. Os mais espertos. Astutos. Sagazes. Mas ninguém até agora me disse o que está contido nesse bilhete. Vamos, pessoal. Façam força.”


- Quantasvezes pesquisaram o apartamento dele? Sete? – perguntou Cristiano, o policialdo ‘serviço bem executado’ – E porque só na última encontraram seu corpo? Sete equipes, e só a última teve a competência de encontrá-lo?


- Obrigado, Cristiano – respondeu o capitão – Esse era um ponto que eu queria chegar. O corpo. Em que lugar ele estava nas outras seis vezes anteriores? Como todos sabem, foi encontrado jogado na cama do seu quarto, sem muitos ferimentos, a não ser do pescoço; sem sangue espalhado pelo corpo. Todas as equipes que entraram no caso são competentes. O corpo poderia ter sido removido, mas não havia sinal nenhum que isso pudesse acontecer; eu mesmo descarto essa hipótese. Então pergunto-lhes: o que aconteceu?



- Vamos até o apartamento dele – respondeu Ricardo – pesquisar o que foi deixado para trás.

- E o que foi deixado para trás? – perguntou Chico.


- Pistas – respondeu Ricardo laconicamente.




O Apartamento



A porta de entrada do apartamento do suicida estava lacrada por rolos daquela fita adesiva que a polícia usa desmedidamente. Os vizinhos não perdiam a oportunidade de, sob a soleira da porta de entrada dos seus apartamentos, vasculharem o que mais uma vez a polícia fazia ali no prédio. Como se sabe, pouca coisa foi
descoberta, e somente isso era capaz de dar asas à imaginação de cada morador daquele prédio de cinco andares.


Basicamente nada tinha sido alterado, desde a última investigação – a que resultou o achado do corpo. Eles estavam lá para encontrar qualquer coisa que pudesse ter escapado aos olhares “atentos” das outras equipes, e de fato conseguiram. Ricardo até tinha razão ao considerar a literatura como fator que desencadeou
todo o acontecido, no entanto não conseguia fazer os pontos ligarem-se entre si. Encontraram dois livros sobre magia negra e tudo mais, mas isso qualquer pessoa tem em casa. O que não se encontra facilmente nas casas de pessoas normais são utensílios de cunho duvidoso. Encontraram também uma bacia de metal mal lavada, uma adaga e uma peneira também de metal, uma dentro da outra e todas debaixo da pia da cozinha.


Chico deu o braço a torcer ao abrir desajeitadamente um dos dois livros de magia negra. Caíra dele um papel qualquer, desenhado em traços mal feitos uma figura peçonhenta e um número. 66. Do mesmo livro, abriu a página referente à numeração e encontrou um encantamento que promete abrir uma passagem entre dois ou mais mundos. Algo com ângulos de quinze graus mais distâncias que ele não conseguia entender.


Não foi preciso pesquisar muito mais. O material encontrado deu cabo a algumas dúvidas que ainda existiam. Tiraram as histórias que o suicida escreveu para fora do guarda-roupa e passaram-se n’uma leitura que demorou um bom tempo – sinal que desta vez Chico, bem como Ronaldo, estava equivocado. Detalhes como a crença na Lua como Deusa, a obsessão que passara a ter com bizarrices e pequenas esculturas de madeiras, além dos constantes zumbidos que, segundo os relatos dos vizinhos, o suicida fazia todas as noites, geralmente antes de dormir, foram descobertos. Só faltava saber como só foi descoberto o corpo na sétima
investigação.


Segunda Parte



Os sonhos me falaram que o único caminho é o suicídio. Os sonhos me falaram que meus ídolos tiveram que trilhar esse mesmo caminho. Os sonhos me garantiram que logo ao final desse caminho encontrar-me-ia com meus ídolos. Mas antes de viajar, devo fazer que minha vida valha à pena. Devo criar.


Qual é a essência de minha vida? O que me levou a viver aqui e continuar morto lá? Do que, afinal, sou feito? Ou fui feito? E para onde vou? Qual será o último lugar que meus pés pisarão? Céu? Inferno? Dis? R’Lyeh? De qualquer forma, estou condenado. Resta-me... escrever. O que será que as pessoas vão pensar sobre tudo isso?


A minha maior contribuição. É isso! A minha maior contribuição para a humanidade! Não falo de minha vida, pois ela vai acabar dentro em pouco, mas do que estou criando.


Quero. Quero poder investir nesse projeto de vida, para depois morrer. Acho que ainda estou ligado a este lugar devido à chuva que cai insistentemente. Adoro a chuva. Adoro a escuridão, as trevas. Adoro lugares lúgubres. Sou filho deles, afinal. Sangue do meu sangue, sombra da minha sombra. E se tenho medo? A coragem que tenho no peito não cede lugar, ainda mais para o medo. É bobagem pensar que estou aqui só de passagem, pois terei minha marca. E quem em mim acreditar, estará salvo. E quem em mim não acreditar, não fará diferença. Cultuo a Lua como Deusa, a minha adorada Deusa. Levo uma vida desregrada, mas

pouco me importo. Terei meu lugar lá.

Sabe o que ouço aqui dentro? Um estranho zumbido dentro de minha cabeça quando deito-a no travesseiro. Mais parece um aviso de que eles estão chegando. Mais parece um recado de que novos habitantes o nosso Planeta Terra terá. Para nós, alienígenas. Para eles, alienígenas somos nós. Também sei que tudo isso já estava escrito, e não tardaria em chegar. Basta as estrelas alinharem-se para formar o caminho do qual eles atravessarão. E meu auxílio, é claro. É das mãos de um humano que a porta abrirá, mas não é dos olhos de um humano que veremos a glória.


Eu aconselho vivermos como sempre vivemos. Deixemos o pânico na hora em que o pânico virá. Não vamos antecipar nada, nem o nosso sofrimento, pois para tudo tem um tempo. Inclusive para o fim.


Às vezes olho-me no espelho e vejo um monstro. É difícil constatar que nasci assim. É difícil, aliás, respirar,
viver olhando para esse “sinal do demônio” no menor dedo da minha mão direita, e não desistir de uma vez por todas. É uma guerra interna, mas que não respeita barreiras.


A única coisa que vejo no futuro é a obra. Devo criar. Somente assim serei liberto dessas amarras que prendem minha sequiosa alma à mercê de todo o mal contido nesse lugar. Olhar para os lados e ver as pessoas em suas atividades normais, tudo isso me faz sentir um aperto no peito, pois sou incapaz de ser, de ter, de dar.


Existe a febre, também. Não aquela que nos deixa doente, mas a dúvida sobre o que me transformarei. O tempo corre rio abaixo, e eu continuo sofrendo com isso. Para variar, a hipertensão é outro mal que me aflige. Mas, acostumado, nenhuma importância mais tem.


O sonho cria vida. É isso que me fará deixar o maior legado nesse planeta. Serei lembrado como o criador, tal qual a sede na garganta farei-me um vício na boca de cada um que possuir a mesma carne, o mesmo sangue humano que o meu.

Terceira parte


A Escrivaninha

Por fim, a espera teve resultado, consegui terminar a minha aguardada obra-prima. Nem sei por onde começar. Estou eufórico! Acho que é a hipertensão. A garganta seca, os olhos ardem, o rosto queima. Um calor invade meu sepulcro, e uma inquietação instala-se no meu âmago. Ah!, maldito sinal do demônio. Foste tu a causa dos meus problemas, serás tu o primeiro a desgarrar-se de mim: fujas como um louco foge do manicômio. E leve consigo minha dor.

Leva minha dor em sua mala de couro branco. Assim, quem sabe, terei paz. Isso se a sorte permitir. A mesma sorte que vem me abandonando dia após dia, como se assim ela própria fosse me matar. Sorte tem aqueles que nasceram para brilhar. Eu, por minha vez, engendro uma artificial luz, da qual luto para mantê-la acesa, e que continuarei a lutar, por meio de minhas criações, para que jamais se apague. Sem em vida não posso ter sucesso, a minha morte vem para iluminar o caminho de minhas obras.


Minhas mãos estão inchadas e cortadas. Escamosas, indicam que envelheci vinte anos em um. Mas ainda assim apresento
esse sinal horroroso que jamais vai deixar de existir, e que vai me acompanhar até na minha última morada como humano,

meu ataúde de alabastro. Aqui vai meu desejo: que eu seja enterrado sob mil glórias, mas ainda assim na escuridão que foi, e ainda é, minha morada.

Que os filhos dos filhos de meus leitores sejam como jamais fui: sadios e cheios de saúde. Essa herança me é cruel demais para suportar. Procuro incessantemente meios para fugir, para amenizar, para curar todo esse mal que me aflige. O sinal do demônio em minha destra. Falta-me saúde. Não é só hipertensão, é a síndrome, Síndrome de Koffer*1, que fui condenado a nascer.


As unhas crescem, meu rosto enrijece, minha carne apodrece. Mil rugas surgem, e minha imagem aterroriza. É como um bacanal doentio, um festival proporcionado pelos vermes vivos ‘inda em mim. A extravagante realidade da vida humana. Que não teve remorsos ao dar-me de beber do líquido que forma a vida. E é essa vida que fui condenado a morrer.



*1] Síndrome de Koffer: foi-me, certa vez, soprado em sonhos que eu iria morrer de “Síndrome de Koffer”. Inspiração onírica.



Sem nome, sem lustro



Naturalmente um feitiço só pode ser efetuado se o mago souber a fórmula exata. Precisa-se recitá-la completa, sem erros, de chofre. Aqui se enquadra qualquer pequeno grande humano, caso queira marcar época, mesmo que o preço final seja sua vida. E recitar a fórmula seria o passo mais fácil, pois uma rápida leitura seria o suficiente para decorar. Há que ser usado os utensílios que permitem transpor tempo e espaço. É provar, de uma vez por todas, que sabe da verdade. Não hesitar um segundo sequer para colocá-la em prática.

Seguindo esses passos, pude encontrar o portal que me levaria muito longe. Como é bom sentir todo o poder do mundo nas minhas mãos! É ser deus, sem brincar de ser deus. É ser demônio, sem ser um demônio. É sentir a vida novamente, mesmo que eu nunca tenha tido uma. É deixar minhas fraquezas de lado e deter todas as forças do cosmos; é derrotar Leviatã, a serpente mitológica, sendo ela própria, mas com poderes ainda maiores.


O marrom predomina, são cores abstratas, mas ainda assim concretas, pois sinto ao tateá-las. Consigo ainda entrever cores claras e cores mais escuras, o branco e o preto, amarelo e caramelo mesclam-se n’um turbilhão de matizes que nunca vi antes. É assustador, mas é maravilhoso ao mesmo tempo. Tamanho poder homem algum jamais sentiu, ou viu. Eu posso caminhar por entre eles. Eu posso flutuar, inclusive. Posso vê-los, tocá-los, senti-los!


Materializam-se dentro do meu cômodo. Eu já não sinto verdadeiramente meu corpo. Sinto, entretanto, o revoar desses demônios, o ruflar de suas asas, o raspar de suas unhas fétidas e infectadas, o enfadonho respirar. Eles escapam pelo portal aos milhares, são presenças sufocantes, e como fumaça, perscrutam cada ângulo, cada espaço, cada centímetro de minha sala, invadem minhas escrivaninha, entram em meu corpo, são como invasores que devastam tudo por onde passam.


Eu vejo cada vez mais nítido o que são. Iníquas, dominam tudo, inclusive a mim. Era isso que eu procurava! A essência de minha vida, o motivo pelo qual atravessei anos sem desistir da minha criação!


Sou levado por essas mesmas criaturas ao lugar de onde originaram-se. Ah!; o que vejo? Muitas crias, muitos seres, muita realidade. Todos esperando a hora certa para o retorno. Eis que atravessei a barreira dos mundos. Um lugar que jamais esquecerei.


Agora é o meu retorno. Sou sugado pelos meus próprios pensamentos... tudo isso de profundo e profano foi eu quem engendrou. Sem nome, sem lustro é a cria dos meus pensamentos!


E todos esses seres me fazem crer que sou o único a conhecer a face mais negra do cosmos. O intento mais puro, e cruel, e

avassalador, dos que vivem lá no outro lado; o lado que reside o desconhecido. Sob um insignificante preço: minha vida.

O retorno é até pior do que eu imaginava. Posso ver novamente meu quarto, minha cama... está tudo acelerado, muito rápido, absurdamente incontrolável. Foram poucos os momentos em que pude sorrir de felicidade. Poucos... é algo que não sei explicar, tudo desacelerou de repente. É como pular com uma corda no pescoço. A velocidade é enorme, mas, de repente, tudo pára. Sim, eu sorri. E meu sorriso tem motivo. Encontrei, em minha cama, definitivamente, o que tanto procurava: a minha morte.



FIM











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