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10.12.09

VIRGÍLIO - Henry Evaristo



VIRGÍLIO


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Henry Evaristo




I
Raios cortam a escuridão da noite. Eles se esgueiram por entre nuvens escuras como se fossem ancestrais e mitológicas serpentes de fogo. Posso mesmo ver seus rastros luminosos correndo em mil direções no céu revolto. Sinto uma tristeza arrasadora, uma comoção por mim mesmo e por minha miserável condição neste lugar. Estou morto! Morto! E, no entanto, sinto-me capaz de refletir sobre o que pode ter me posto nesta situação. Minha memória está enfraquecida; não posso me mover, mas estou consciente de minha prisão num corpo que não mais me pertence e que não mais está de forma alguma integro.

Através de meus olhos embaçados e inexpressivos vejo um campo imerso na noite negra. Como terei adentrado esta região tão desolada? Quem me largou assim neste ermo? Nesta solidão tão terrível agora sou apenas espírito e, no entanto, experimento sensações da matéria.

Um frio intenso que trás ventos cortantes como finas adagas a tudo envolve e posso sentir que tenho minhas roupas encharcadas de água e de algum outro líquido mais espesso. Tudo ao meu redor parece ter vida e emitir estranhos ruídos. Sinto uma tristeza tão grande e tenho tanta vontade de chorar!

Tento mover meu corpo morto e, para minha surpresa, agarro o chão arrancando tufos de mato enlameado. Sinto minúsculas criaturas começando a rastejar sobre minha pele no mesmo instante em que olho para o céu mais uma vez e imagino se as estrelas apagadas desta noite medonha não estão apenas escondidas para testemunharem melhor minha agonia; elas que costumeiramente são personagens de um espetáculo tão indiferente! Em silêncio, e do fundo da alma, grito na solidão esquecida do campo:

Oh, Senhor, por que me abandonaste a este sofrimento? Por que me tiras lentamente os últimos movimentos físicos? Estou morto! Uma coisa louca a especular nas trevas sobre si mesma; perdida entre enigmas ominosos enquanto nuvens aziagas atacam com seus raios ameaçadores; suas descargas de ódio celestial!

Sinto as primeiras gotas da tempestade iminente. Ouço tantos barulhos neste lugar escuro! Sei que há uma criatura que corre pelo campo. Já a avistei, neste meu horror, como algum monstro assustador. Não sei o que é, mas vi que tem sangue na boca e farrapos de uma vestimenta que acredito ser minha. Vez em quando emite um som que é de esmagar o coração; um tipo de uivo lamentoso, arrepiante e maligno. Se aproxima de mim e me cheira, me olhando. Às vezes sinto um arranhar asqueroso e penso se não são suas garras experimentando minha carne no escuro.

II
O tempo passa e a estranha presença jamais me abandona; persiste me oprimindo, não dando um segundo sequer de descanso para meus nervos abalados. Aproxima-se e se afasta correndo.
De repente, mas depois de muito tempo, adquiro uma nova e misteriosa consciência. De alguma forma sei que não estamos mais sozinhos, eu e meu opressor.

A chuva chega súbita e me encharca ainda mais; embota meus pensamentos com novo e fortalecido frio de aço cortante e, tão célere quanto veio, se extingue e deixa no céu uma má impressão de desgraça vindoura onde estrelas malsãs disputam espaço por entre vagas cinzentas.

Sinto uma energia malévola emanando de um bosque distante e sei que neste momento vem de lá um bando de coisas assassinas, furiosas. Mais do que nunca estremeço por causa da exposição de meu corpo largado no chão de um campo desolado assombrado por bestas selvagens.

E vejo vultos se acocorando no escuro, bocarras babando de fome!

Minha respiração descompassa e tento puxar o ar com toda a força que me resta sentindo imediatamente como se barras de gelo invadissem meus pulmões. Estou sufocando na agonia de um medo terrível que quase chega a tirar os únicos sentidos que me restam. Tenho náuseas; arrepios que percorrem meu estranho cadáver.




III
Insinua-se agora, por entre as brumas de minha absurda consciência a vaga noção sobrenatural do que está acontecendo. Sei, assim, que fui atacado por uma destas feras que agora me rodeiam. Uma impressão me toma de assalto: Creio que estacionei meu veículo na margem de uma estrada deserta mas completamente familiar. É isso! Foi por me ser tão familiar este local que não exitei em estacionar quando...

A memória parece reviver agora com mais intensidade e sou capaz de desvendar mais uma parte deste tenebroso enigma.

O carro!

O carro começou...

O motor...

Meu Deus o que eu fiz? Devia ter voltado à velha fazenda quando percebi o defeito no funcionamento do Ford. Jamais poderia ter sido tão displicente a ponto de estacionar no acostamento desta estrada isolada e cercada por... Oh não! Oh, Deus! Cercada por campos que se perdem no horizonte ou margeiam bosques insondáveis de onde saltam, às narrativas dos povos da região, toda sorte de suspeitas escabrosas e crenças aberrantes. As histórias, as malditas histórias! Ignorei-as todas mesmo sabendo, desde menino, do horrível fundamento que possuíam! Desconsiderei sumariamente os relatos dos que vivem por aqui a respeito de certa maldição. Alcunhei-os, todos, de um bando de ignorantes supersticiosos que buscavam apenas degradar o bom nome de minha família espalhando rumores sobrenaturais a respeito de meus antepassados. Malditos interioranos que se punham a espalhar que meus parentes de gerações passadas andavam a atacar pessoas nas noites enluaradas metamorfoseados em abominações selvagens indescritíveis. Ao inferno esta turba de detratores! Gritara eu, mesmo sabendo da terrível verdade!

Recordo tudo agora! Lembro da festa que me trouxe de volta à casa de meus pais para findar o mês; o mês das comemorações em torno do trigésimo terceiro aniversário de meu irmão, Virgílio, o mais moço dos sete homens aos quais minha mãe mostrara, pela primeira vez, a luz deste planeta.

Virgílio, amado e malfadado irmão que o inferno condenou a carregar o terrível fardo resultante das bruxarias satânicas daqueles nossos hediondos ancestrais. Por que fui tão desrespeitoso e cético ante o fato de que se aproximava a hora do amaldiçoado sétimo? Por que não levei em conta seu estranho comportamento durante os últimos dias? Logo eu que, quando jovem, fui tão adepto quanto ele o era agora de crenças em coisas estranhas e de leituras de materiais proibidos pela sociedade. Logo eu que lia Ovídio com a atenção redobrada aos detalhes mais mórbidos e folheava, hipnotizado, os estudos bizarros do padre Baring-Gould!(1).

Certa noite, depois do jantar, meu irmão simplesmente desapareceu. Todos os amigos e parentes convidados a casa para as extensas festividades que eram costume da família se puseram a procurá-lo desde as instalações até os ermos do campo e penetrando pelos bosques até o velho lago no centro do pântano que cerca a fazenda. Nada encontramos ali e em lugar nenhum! Nada se ouviu ou se viu até a manhã do dia seguinte quando ele mesmo, Virgílio, reapareceu com as roupas em farrapos e coberto de detritos animais, dizendo que passara a noite no celeiro dos Mackenzie por que algo martelara em sua cabeça que ali era o melhor lugar para passar aquela noite. Estava faminto e abatido, e ao sentar-se à mesa do café consumiu tudo o que encontrou com uma voracidade jamais vista em sua pessoa. Na hora, creio que ninguém mais percebeu, vi as manchas em suas mãos; manchas vermelhas que ele tentara apagar com água mas que eram fortes demais para desaparecerem facilmente. Depois, mais tarde, correu o boato de que nossos vizinhos haviam chamado a polícia por causa de alguns novilhos mortos que encontraram em seus pastos.

Na noite deste dia não me foi possível dormir. Virgílio insistiu em ficar comigo em meu quarto e falou o tempo inteiro sobre suas antigas e novas leituras. Estava tão magro que, às vezes, eu tinha a impressão de que os ossos de seu rosto estavam a ponto de perfurar a carne e saltar para fora. Com efeito, davam a impressão de que se mexiam sozinhos, tão protuberantes se haviam tornado.

Pelas três da manhã, de repente, se ergueu do chão onde estivera sentado sobre umas almofadas e, sem dizer mais nada, saiu. Eu o segui. De longe vi quando ele, com movimentos tão sutis quanto os de um gato, abriu silenciosamente a porta da sala e saiu para o quintal. Foi direto postar-se próximo à cerca que separava a pocilga. Ali parou e ficou a fitar os animais adormecidos. Eu me fixei junto a um grupo de árvores e me ocultei nas sombras para ver o que ele faria. Com um salto extraordinário meu irmão passou para o lado de dentro da pocilga e pude ouvir que alguns animais emitiram ruídos desaprovadores ao intruso. Depois se iniciou uma correria no interior da cerca. Resolvi subir na árvore para ver melhor. Meu irmão estava a correr com os porcos, completamente nu. Não os machucava, apenas os instigava e corria com eles, como numa brincadeira. E se jogava na lama com um sorriso estranho no rosto. Depois, de repente, parou como que a sentir algo no vento. Foi então que se virou na direção do grupo de árvores em que eu me escondera e ficou a observar por muito tempo. Era como se soubesse que eu estava ali.

De alguma forma, não lembro como, o perdi de vista. Ao olhar para a pocilga mal iluminada avistei somente os animais agitados e insones. Foi um tênue movimento logo abaixo de meus pés que me fez desviar a atenção. Olhei na direção do ruído e lá estava ele, Virgílio, subindo velozmente pelo caule da árvore em que eu estava. Ainda trazia no rosto um riso sardônico. Instintivamente senti que devia me afastar dele o quanto fosse possível. Me falava fundo no peito um estranho sentimento de ameaça iminente que me fez galgar galhos mais altos em busca de uma segurança que se fazia urgente naquele momento. Mas não me foi possível escapar à aproximação veloz de meu irmão. Com três ou quatro passadas vigorosas ele estava aos meus pés e, com mais um pouco, posicionou seu rosto enlameado bem em frente ao meu. “A noite está tão fria, meu irmão”. Disse ele “Não temes contrair algo de ruim expondo-se assim à noite? Que fazes aqui? Me espiona?”.

Eu apenas limitei-me a olhá-lo. Não tinha palavras para lhe responder. Minha garganta estava tão seca que meus lábios pareciam ter colado um no outro. Sentia pontadas de dor de cabeça se iniciando na base de meu crânio. Não havia como eu pudesse negar que meu irmão estava diferente, comportando-se anormalmente. Não havia como negar ou não lembrar de tudo que crescêramos ouvindo, as velhas histórias de nossos antepassados. E não havia como ignorar mais as leituras que eu mesmo havia feito a cerca do assunto.

Calado eu via o seu rosto a menos de um metro do meu próprio. Podia ouvir sua respiração ofegante e vigorosa e sentia seu hálito anormal que rescendia a carne crua ou Deus sabe mais o quê. Ele também se calou a me fitar nos olhos, depois, para meu espanto, simplesmente largou as mãos dos galhos onde se segurava e deixou-se desabar ao solo onde caiu em pé e logo correu desaparecendo nos campos escuros.





IV


Fiquei ainda muito tempo sem ter coragem de descer de onde estava. Para mim, havia algo indescritível escondido em algum lugar esperando que eu colocasse os pés no chão para então me agarrar e acabar com minha vida. Somente pouco antes do amanhecer é que respirei fundo e, encorajado pelos primeiros raios da aurora, deixei meu falho abrigo na árvore.

Além de tudo o que ocorrera na terrível noite, me incomodava o fato de que os disparates que eu ouvira das bocas dos locais durante os vinte e cinco dias que me retive na região eram verdades que não mais podiam ser negadas. Eu sabia que isso um dia iria acontecer, desde sempre nossos pais nos alertaram para as possibilidades insólitas de nosso futuro e, principalmente, do futuro de Virgílio. Minhas violentas negativas aos comentários do povo eram apenas manifestações de meu orgulho e de minha vergonha. Neste momento, no entanto, ainda não se haviam iniciado os comentários sobre avistamentos noturnos, perseguições e desaparecimentos de animais e até mesmo pessoas. Isso só veio a ocorrer cinco dias depois.

O desconforto velado que vinha se apossando de todos na fazenda só tornou-se ainda mais opressivo quando um dos convidados de minha família, o padre Lehrmann, apressadamente arrumou suas malas e partiu sem muitas explicações. Falou, apenas a mim, que algo viera a sua janela durante a noite e lhe dissera coisas terríveis sobre a sua religião aconselhando-o depois a partir imediatamente. Aos demais inventou que recebera um comunicado de que era aguardado para ter com o bispo urgentemente. Antes de entrar em seu veículo, no entanto, puxou-me pelo braço e fez sua boca encostar-se a meu ouvido. “A criatura que veio a minha janela, pelo lado de fora, era apenas uma sombra e jamais eu poderia dizer como seria sua forma física, no entanto sei que era seu irmão, este menino que faz aniversário. Cuide dele! Algo está para acontecer aqui!”

Dois dias depois, ao café da manhã, o criado responsável por recolher o gado no pasto, entrou correndo na cozinha. Estávamos todos reunidos, inclusive Virgílio, que eu andara observando atentamente e percebera que não tocava mais em nenhuma refeição servida na casa.

“A estrada está cheia de carros de polícia, patrão.” Disse o empregado.

Meu pai ergueu-se de um salto e correu ao pasto com o funcionário assustado. Minha mãe então se retirou rapidamente e foi para seu quarto. Permanecemos à mesa eu, meus outros irmãos e mais alguns convidados como o professor Albertus Morgan, o enfermeiro Joshua e a tia Rosaleen. De repente, Gilliam, meu irmão mais velho, sentou-se ao lado de Virgílio e ao meu. Ele passou um braço pelo pescoço do outro e puxou-o para bem próximo de si. Meu coração disparou na hora e um tremor incontrolável se apossou de mim. Gilliam era um homem radical e irredutível.

Ouvi quando ele sussurrou ao ouvido de Virgílio:

“O que você anda escondendo, menino? O que anda fazendo por aí de noite? Será que terei que matá-lo antes que você resolva parar com tudo isso e se portar de forma aceitável nesta família?”

De onde eu estava podia ver a pressão que as mãos de Gilliam exerciam no pescoço e nos ombros de Virgílio que, por sua vez, estampara no semblante um ar de desafio mortal. Com um impulso violento ele se ergueu e correu para o andar de cima. Depois Gilliam pediu desculpas aos convidados e me chamou a um canto.

“Vou-me embora!” Disse ele. “Não agüentarei estar aqui quando tudo se consumar. Os outros também querem ir comigo. Mamãe está enlouquecendo em silêncio. Você não vê ou não aceita o que está acontecendo? Está louco em ignorar a verdade!”

“E vai deixá-lo assim a mercê dos acontecimentos?” Repliquei eu. “O que mais posso fazer? Este é um mal para o qual só há um remédio e você o conhece muito bem! Quando chegar a hora a própria comunidade se encarregará de seu destino, creio eu!”

"Não acredito que queira isso para seu irmão!" Eu disse, mas ele não mais me ouviu; já me dera as costas e já partira para seu quarto arrumar sua bagagem de mão.

Fiquei na cozinha junto a outros amigos e conhecidos da família. O som dos talheres chocando-se contra a porcelana dos pratos e xícaras ressonava em meus ouvidos como as agulhas agudas de algum costureiro louco a agredir, a espetar meus tímpanos. Tinha um brutal aperto no coração e um suor nervoso começara a escorrer do alto de minha testa.

Saí para o quintal e ao longe, na estrada, vi os homens da polícia. Estavam acomodando em uma das viaturas maiores um saco de plástico preto. Corri ao seu encontro e vi meu pai e o funcionário parados próximo a cerca que demarcava a propriedade. Estava com eles, conversando pelo lado da estrada, um homem de roupas marrom.

“Assassinaram o velho Mackenzie, filho.” Disse meu pai quando finalmente os alcancei.

“Mas, como? Quem poderia ter feito isso?” Perguntei me dirigindo ao homem do lado de fora de nossa cerca, obviamente um oficial de polícia. É claro que, àquela altura dos acontecimentos, eu já sabia perfeitamente o que ocorrera. Mas as palavras do homem de marrom foram ainda como golpes certeiros em meu orgulho e em meu espírito.

“Ora, não se preocupe que tenhamos agora algum maníaco rondando por aí” Começou ele e, na medida em que falava, senti meus pelos se eriçarem ao longo de meu corpo.

“O assassino não foi nenhum homem, se quer saber. Antes se parece mais com algum tigre que tenha fugido de algum circo. Um leão talvez!”

“Como pode supor isso?” Perguntei eu.

“Ora, filho! Não viu a facilidade com que os homens ergueram o cadáver? Não restou muito dele para fazer peso. Em fim, nada que um homem pudesse causar.”

“E costumam haver ataques de animais por aqui regularmente?” Perguntei novamente temendo a resposta.

“Bem, você agora levantou uma boa questão! Sabe que nos últimos dias o povo tem nos reportado casos estranhos demais? Não que outros velhos tenham aparecido por aí devorados desse jeito mas... Recentemente muitos fazendeiros perderam animais de criação para uma fera que anda rondando as propriedades. Estamos suspeitando da fuga de algum animal selvagem daquele circo novo que chegou em Woodshire. Inclusive neste momento temos viaturas a caminho de lá para algumas perguntinhas aos proprietários afinal, desta vez, não foi nenhum porco fedido que o filho da mãe estripou, não é mesmo?”

Deste momento em diante eu mesmo não pude mais dizer ou fazer nada. O aniversário de Virgílio seria dali a dois dias e os preparativos estavam mais que encaminhados. Ele, por sua vez, encontrava-se cada vez mais distante e estranho. Tinha mudanças de humor e febres súbitas. Sentia dores lancinantes na cabeça e freqüentemente estava desaparecendo sob o pretexto de que precisava ficar só para pensar. Em seu quarto minha pobre mãe apenas chorava o dia inteiro enquanto os boatos e comentários se espalhavam pelas propriedades, entre os funcionários e os patrões das fazendas vizinhas. Para os de fora eu insistia em negar qualquer forma de maldição sobrenatural e, mais de uma vez, entrei em conflitos duros e perigosos com homens rudes do campo. Meu pai limitava-se ao trabalho da fazenda e evitava sumariamente qualquer conversa sobre o assunto.

Na tarde do dia anterior à festa muitos funcionários haviam pedido demissão e quatro de meus irmãos haviam partido. Os convidados de meus pais que permaneceram na sede de nossa fazenda apresentavam-se visivelmente irrequietos e pesarosos. Não havia nenhum clima favorável a comemorações, mas, por insistência de minha mãe, manteve-se o plano original.

Virgílio andava a esquivar-se pela casa durante o dia e desaparecia durante a madrugada. Vivia envolto em silêncio e fisicamente aparentava extremo cansaço apesar de que seus movimentos estavam cada vez mais ágeis e imperceptíveis. Nada se podia falar sobre ele dentro da casa pois a tudo ele ouvia não importando onde estivesse. Bastava pronunciar seu nome, mesmo aos sussurros, para que ele não demorasse a aparecer no local espreitando de algum canto de porta e detrás de algum móvel. Andava sujo e malcheiroso. Para os convidados, poupados a todo custo por meu pai de ouvirem os comentários do povo local, o aniversariante simplesmente enlouquecera. Tenho certeza, no entanto, que eles também sabiam das suspeitas que se erguiam contra meu irmão e, por extensão, a toda a nossa família. Ao checar os aposentos de alguns deles durante a madrugada pude constatar que dormiam de portas trancadas.

Em meu quarto eu deitara cedo aquela noite mas uma inquietação terrível se apossara de mim e não consegui dormir. Levantei-me e peguei um volume que retirara da biblioteca de meu pai naquela tarde. Era o “Lunis Daemonium” do ocultista medieval Moranus Malgred que trazia em seu preâmbulo o sermão do doutor em teologia Johan Keisersperg proferido em uma série de cultos religiosos em torno de Estrasburgo por volta de 1517:

“O que devemos falar sobre lobisomens? Já que existem lobisomens vagando pelas vilas, devorando homens e crianças. Conforme dizem (...) eles galopam, ferindo homens e são chamados de ber-wölff ou wer-wölff. Vocês perguntarão se sei algo sobre eles? Responderei que sim (...) Aparentemente capturam homens e crianças (...) Por sete razões:

1. Esuriem = Fome


2. Rabiem = Selvageria


3. Senectutem = Velhice


4. Experientiam = Experiência


5. Insaniem = Loucura


6. Diabolum = O diabo


7. Deum = Deus”

A esta altura de minha leitura ouvi como que tênues arranhadelas na vidraça de minha janela. Voltei a atenção para o local mas nada logrei avistar a não ser a escuridão da noite que parecia querer insinuar-se quarto a dentro. Baixei novamente a cabeça para ler mas o som de um baque violento no vidro novamente me levou a fita-lo. Desta feita avistei um vulto postado em pé do lado de fora. Era de grande estatura e tinha a cabeça e o tronco encurvados e ofegantes. De repente vi uma mão enorme recostar-se à vidraça. Sua palma amarelada sangrava perfurada por pequenas pedras e pedaços de madeira do solo da fazenda. Era a mão de quem andara de cabeça para baixo ou de quatro. Ao tocar a superfície fechada deixou-lhe uma imensa mancha de sangue e suor. No mesmo instante não tive dúvidas de que se tratasse de Virgílio e levantei-me da cama com cuidado para aproximar-me da fenda escura que era minha janela. Abri a peça cautelosamente e perscrutei as trevas no quintal. Aos poucos minha visão se acostumou à falta de luz e pude divisar uma sombra parada sob as árvores logo em frente ao meu quarto. Ofegava e rosnava aquela sombra, e vez em quando, passava as mãos no caule de uma das árvores arrancando-lhe pedaços da casca. Era mesmo Virgílio mas suas roupas estavam abertas pois seu abdôme crescera a ponto de escapar para o lado de fora arrebentando os botões da camisa e o zíper da calça. Também seus sapatos se haviam rompido devido ao inchaço de seus pés. Com uma voz que apenas lembrava a sua ele me falou pela última vez:

“Estás me vendo assim, irmão? Eu não te falei? Eu não te falei mil vezes que não agredisse com tuas palavras de ódio o povo simples daqui? Pois eles agora serão meu gado. Terão aquilo que tanto aguardavam desde a ultima vez, a mais de cinquenta anos, quando o ultimo membro da geração passada foi caçado e morto aqui mesmo nestas florestas. E tu, vai embora amanhã, para o teu próprio bem; pois a besta, quando irrompe, não reconhece nada!”

Transido de horror apressei-me a fechar e trancar a janela. Depois olhei novamente para as árvores mas não havia mais nada lá além do vento soturno da noite fria de Agosto agitando os galhos mais altos. No dia do aniversário de Virgílio instalara-se um tal clima de tensão em nossa propriedade que, de manhã bem cedo, fomos obrigados a assistir consternados a partida de mais três convidados: O professor Anton, a enfermeira Olga e o pianista que animaria a comemoração, Sir Arthur Preston. Ainda assim, estando minha mãe resoluta e irredutível, a festa teria lugar àquela noite.

Por volta das cinco da tarde ninguém imaginava qual seria o paradeiro de meu irmão. Edmondo, o segundo filho de meus pais, veio ter comigo em meu quarto. Ele sentou na cama, respirou fundo e começou a falar mas não sem antes observar como eu mesmo estava abatido e com uma aparência terrivelmente desolada. Disse ele, a respeito do que ocorrera na casa do fazendeiro Ethan Moses, na propriedade a cinco quilômetros da nossa.

“Era duas da manhã quando os cães começaram a latir desesperadamente no quintal. Eles sempre são os primeiros a detectar espíritos diabólicos rondando nas proximidades. Depois ouviu-se o grito alucinado da filha do casal. Todos acorreram imediatamente ao terceiro andar e levavam rifles potentes consigo. Estava no interior do quarto da jovem um monstro terrificante. Tinha garras, Bernard, e tinha presas; no entanto, o seu rosto era o de nosso irmão Virgílio. E andava em pé como qualquer um de nós. Tiros foram disparados mas as balas não pareceram fazer qualquer efeito sobre a fera que saltou para fora do quarto pela mesma janela por onde entrara. Lá embaixo, acossada pelos cães de caça, estraçalhou-os como bonecos e desapareceu na noite. Os homens deram-lhe caça até o amanhecer mas nada mais viram ou ouviram. No entanto, todos já estão falando de nossa família e de como somos “maus e estranhos”. Eu não agüentarei mais isso! Estou partindo agora e te aconselho a ir também. Esta festa transformou-se numa horrenda viagem aos abismos. Nossa mãe está louca, nosso pai me parece estar tomando o mesmo caminho e os poucos convidados que restam se retirarão ainda esta tarde. Ninguém tem mais coragem de permanecer aqui à noite.”

Ergui-me da cama e deixei meu irmão a falar com as paredes. Que se fosse também! Corri ao quarto de meus pais e encontrei minha mãe atirada à cama como uma moribunda terminal.

“Mãe!” Chamei. “Isso tem que parar, mãe! Ela pareceu não me ouvir ou simplesmente me ignorar ao que fui direto até a cama e a sacudi pelos braços finos e pálidos. “Temos que aprisioná-lo, mãe. Em nome de Deus!”. Ela então me lançou um olhar de fúria tão intenso que fez meu coração congelar.

“Você quer matá-lo?” Perguntou ela com uma vozinha débil de doente. “Quer matar seu próprio sangue?” Gritou desesperada. “Vá embora daqui, seu monstro!” E sua voz trazia agora tamanha angústia e ódio que a única coisa que me vi em condições de fazer foi me retirar e entregar todos ali a própria sorte. Retornei a meu quarto e de lá ouvi o barulho do motor do veículo de meu irmão se afastando da fazenda. Não havia outros transportes mais além do meu e, antes das seis e trinta, ele também partia passando pelo portão principal que permaneceu escancarado atrás de mim. Ainda pude ver meu velho pai entrando na casa deserta já envolta nas sombras noturnas e fechando a porta atrás de si. Com todo meu coração desejei que ele a tivesse trancado bem e que mantivesse, doravante, uma arma sempre ao seu alcance.

Foi a pouco menos de dez quilômetros da fazenda que senti, entre arrepios e náusea, o motor do automóvel morrer sem nenhuma explicação.

Estacionei no acostamento escuro e abri o capô. As últimas coisas que fui capaz de notar conscientemente foi o ruído do vento fustigando as árvores mais próximas e a maneira criminosa como os fios das conexões mais vitais do motor do carro haviam sido roídos por dentes afiados.



V

Então a profecia que nos assombrava na infância, cujo conhecimento eu banira para um lugar remoto e esquecido de meu subconsciente, se cumprira e cá estou eu, agora, neste descampado, a mercê de algo que não mais fazia parte de minhas memórias desde que deixei o campo e voltei-me para a vida urbana como um ordinário e alquebrado professor de matemática.

É esta a coisa que agora está às minhas voltas, no escuro, rondando-me como o leão ronda a zebra na savana. Ouço seus passos abafados pela lama, sua respiração ofegante e ansiosa, e o reconheço, muito embora suas feições já não sejam mais, nem de longe, as de meu triste irmão; e sei que, lá atrás, nos confins deste terreno abandonado, violentas vontades se contêm a espera de uma ordem para atacar. São os seus iguais, os seus companheiros-parentes de maldição, todo aquele sétimo filho de cada geração de nossa amaldiçoada família e também todas aquelas vítimas que tiveram a desventura de cruzar-lhes o caminho em alguma noite escura; em algum lugar solitário. Como ele, estavam todos condenados a vagar transmutados pelo mundo dos vivos assistindo o declínio dos seus e da própria humanidade.

Deus me perdoe, pois agora sei que eu próprio me tornei uma vítima dentre tantas deste terrível animal que se aproxima; aquele cujas presas trazem ainda resquícios de minhas vestes arrancadas durante o primeiro ataque na beira da estrada. Correm com ele duas bestas iguais em ferocidade e porte; três monstros uivadores galopando de quatro pela noite do campo e sob o testemunho das estrelas frias que do espaço parecem emitir para mim um último sorriso sarcástico. Tento fechar os olhos mas descubro que não mais enxergo com a visão do corpo e só o que posso fazer é limitar-me a assistir as terríveis hordas começando também a avançar em minha direção para me dilacerar como quiserem; e esperar pelo momento terrível em que eu mesmo me erguerei como uma delas para engrossar ainda mais as tenebrosas fileiras dos exércitos infernais.

____________________________________



(1) Sabine Baring-Gould (1834 – 1924): Cavaleiro e padre da paróquia de Lewtrenchard, West Devon, Inglaterra. Escreveu “O livro dos lobisomens” no final do século XIX, um dos mais importantes estudos sobre licantropia e zoomorfismo de todos os tempos.

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